Alvarelhão é uma daquelas uvas tintas que passaram décadas, quando não séculos, discretas, dentro de vinhedos de produção de porto, entre tintas e tourigas, em um tempo em que pouco se falava sobre uvas específicas. Coisas que o Douro milenar sempre fez pelo bom paladar.
Lentamente, vários produtores vêm não só identificando essas variedades raras como o alvarelhão, mas fazendo, em vinhos monocastas, com pouca intervenção, que mostrem a cara que as máscaras do passado escondiam – a antiga, anterior a 1912, devia sofrer extrações mais sérias do que a atual, como lembram os trechos do clássico “A Ilustre Casa de Ramires”, de Eça de Queiroz:
« Sobretudo sede! Esse vinho que venha bem fresco… Do verde e do alvarelhão, para misturar. (…) Durante o jantar, misturando copiosamente o verde e o alvarelhão, Gonçalo não cessou de ruminar a ousadia do Casco.(…) E assim precavido, aquecido pelo verde e pelo alvarelhão, com os dois criados de caçadeira ao ombro, importantes e tesos, partiu para Vila Clara, procurar o Sr. Administrador do Concelho.»
Essa aí é puro sorriso, de fruta intensa no paladar, que enche na boca e preenche na alma, com corpo sutil mas poderoso, com algo de gentil ou, como dizem, vinho guloso. Mais do que história na garrafa, é mais uma contribuição para a série “Finalmente, o Brasil descobre Portugal”.
Uma pena o chef belga Frédéric de Maeyer não se dedicar mais às especialidades da sua terra. Mas temos mais dois dias de “Gastronomia Sem Fronteiras”, no terraço do Fashion Mall, em São Conrado para degustar duas delas, a mitraillette e as moules et frites. No primeiro caso, um sanduíche com nome que pode parecer sinistro: mitraillette é metralhadora, em francês.
Mas em épocas de privações durante as guerras, um pão e as batatas nativas (sim, segundo os acadêmicos, a batata frita é belga), dispostas ao longo do miolo como um pente de balas, eram tudo o que tinham. Nesta imagem dos que viram o pior, mas, sorridentes e brincalhões, nos oferecem o melhor, um tremendo sanduíche – a carne e demais recheios vieram depois – em um cheeseburguer assumido, mas com as batatas dentro.
Sempre as frites, aqui para guarnecer as moules, devem ser crocantes por fora e macias por dentro, o suficiente para as batatas mergulhem no molho untuoso, à base de vinho branco, fazendo do prato duas iguarias em uma só, já que o ponto dos mexilhões (ou moules, comme la bas, entre eles) é delicadíssimo.
Bela ideia de chamar o Frédéric, que se solta um pouco de sua confeitaria, premiadíssima, para dar um dos brilhos do evento Gastronomia Sem Fronteiras, ideia de outro chef francófono, o Elia Schramm.
Até pouco tempo, o pirarucu era uma vítima de seu próprio nome, alvo de rimas de gosto duvidoso barrando seu acesso ao olimpo das mesas mais refinadas, que o recebiam mais como curiosidade tropical do que por seu paladar internacional. Mas a coisa está mudando. Recentemente, os cuidados em torno deste gentil monstro amazônico, de até 3 metros de comprimento, de instinto manso, mas com força para arrastar um barco para o fundo do rio, deram novo status ao peixe e à cultura que o cerca, práticas artesanais que abriram espaços em fóruns internacionais de preservação de faunas que somente outros peixes como os atuns e as baleias conquistam.
E assim surge, quase como uma grife, o novo pirarucu, o pirarucu de manejo, com direito a denominação de origem, a oficial D.O. Mamirauá, uma das áreas da pesca da espécie no altíssimo Amazonas, uma surpresa na mesa e uma alegria para as comunidades que vivem de sua pesca, de sua secagem ao sal e ao vento, em estilos semelhantes ao de um bacalhau, mas com a vantagem dos teores de ômega-3, que se obtém, neste nível, somente do salmão dos mares do norte. É brasileiro, apesar da distância, 3.300 quilômetros de suas áreas até nosso litoral, a mesma distância do Rio a Bariloche.
Hoje, o pirarucu de manejo chega fresco, embalado a vácuo, o que mantém a suculência original, e o resultado é um corte macio, tratado na grelha fina. No Rio, o exemplo vem da cozinha do chef Camilo Vanazzi, que poderia ter levado o prato ao cardápio principal, mas preferiu levantar o menu executivo do almoço do Émile, do Hotel Emiliano, em Copa, com a nova marra do peixão. Na guarnição, um purê de couve-flor queimada e uma couve que nem as avós fazem tão tenras.
No paladar, a textura macia de um nível alto de colágenos, que o olho experiente já sabe manter pela convivência do chef com esse tipo de carne. “Não é um tiro ao acaso, já que o peixe frequenta a mesa do restaurante desde 2019, dois anos antes do surgir a Denominação de Origem Pirarucu de Mamirauá, a única de um peixe de rio no Brasil”, diz Camilo, que, em outros cardápios, chegou a defumar e confitar o pirarucu, para servir com escamas de nabo, sofrito de tinta de lula, ora-pro-nóbis e consomê de tucupi preto.
Outro exemplo recente foi o da Isis Rangel, no Gabriela Gourmet, com o mesmo tratamento delicado sobre a grelha e guarnição simples de legumes refogados. Valeria a pena provar de novo, mas o refinamento do prato não foi suficiente para sustentar a ideia do local, e o projeto da casa foi suspenso. Outras experiências dignas de uma noite de provas incluem o pirarucu no espeto, que circula pelas mesas da Churrascaria Palace.
São exemplos recentes, que seguem outra grife ligada ao pirarucu, a de Claude Troisgros, que fez o que devia: apresentou o peixe ao tucupi. “Crocante por fora, supermacio por dentro”, definiu rapidamente o mais brasileiro dos chefs estrangeiros, na época em que o pirarucu de manejo foi posto à prova, também em 2019, com os filés do pirarucu chegando ao Rio e, por ideia dele, levadas ao menu da classe executiva da Azul.
Mas antes mesmo de Troisgros, Felipe Bronze já extraía os sabores do pirarucu, e não só de suas carnes, mas também de suas essências. Já em 2014, ele servia a barriga do peixe com o “mocotó” extraído de espinhas e aparas. O mesmo mocotó veio servido em um copinho, no melhor estilo de um caldinho de boteco, guarnecido com uma mini-baguete. Intensidade, untuosidade, criatividade, todos em nome de sustentabilidade e responsabilidade.
Entre as sugestões “à la française”, há os patês, terrines e rillettes que Frederic Monnier produz artesanalmente e distribui para todo o Brasil. Ou “em croûte” – na crosta – a de massa, tal como um filé à Wellington. Em ambos os casos, são receitas aplicadas aos mais finos peixes de rio da França, que, tal como cá, levou conforto a comunidades que penavam com as sazonalidades e o sofrimento dos rios de margens industriais.
Peixe gigantesco, triássico, de escamas grandes e duras como moedas, típico da bacia amazonense, o pirarucu já reinava antes mesmo do rio existir – era um grande golfo até que o movimento de terras, que separou América do Sul da África, reduziu o rio ao seu curso atual, há cerca de 100 milhões de anos. Da cor vermelha que desenha cada escama, pode vir a pista do nome, “pi’ra” e “uru’ku”, ou “peixe da cor do urucum”.
Sua carne pode ser consumida pura, o que era raro e específico de onde é encontrado fresco, e preparado em grelhas ou em caldeiradas, embora o mais comum é ser desidratada em salmoura, no melhor estilo do bacalhau, e ser vendida em mantas enroladas. Em todos os casos, o tucupi paraense ou a moqueca baiana são clássicos em que a maciez do pirarucu surpreende.
No primeiro caso, vale a tentativa que a chef Natacha Fink sugere em sua receita no site que une os esforços em torno do pirarucu, o Gosto da Amazônia: ela usou o tucupi mais claro, enquanto Vanazzi optou pelo tucupi preto. No caso da moqueca, a sugestão é simples, com o filé inteiro, como o que o Arataca costumava manter no seu cardápio.
Neste ponto, pode ainda ser preparada como o próprio bacalhau, dentro das velhas tradições portuguesas e espanholas. A essa especialidade, os mercados regionais das margens do Amazonas denominam ‘piraém’. O clássico pirarucu de casaca, é uma farofa do peixe desfiado com banana frita e ovos cozidos. Das espinhas, tripas e miúdos do monstro, após o fim de seu defeso, sempre em 30 de março, prepara-se o ensopado ‘guererê’, enquanto seu couro gordo fornece torresmo fino no óleo e sua língua, depois de seca, é usada para ralar o guaraná.
No Peru Amazônico, outro chef assume a proteção ao peixe, lá conhecido como ‘paiche’: Gastón Acurio. Sua carne rosada pode ser consumida pura, em ceviches ou em sashimis, ou filetada para o preparo na grelha ou na caldeirada, como no caso do ‘sudado’ ou a fritura no óleo, para acompanhar o ‘tacu-tacu’. Picada, é a matriz do ‘picadillo de paiche’ ou ainda do ‘sanguchito de paiche’, sanduíche preparado para as crianças, mas de carga tradicional suficiente para elevá-lo ao cardápio emocional que o próprio Acurio oferece em seus restaurantes.
Ou a pinot noir dá certo ou dá muito errado. Admiro os produtores gaúchos que insistem em plantar a uva para produzir vinhos tintos em condições quase adversas para uma uva tão temperamental com solos, climas e umidades.
Enquanto brilhava com os espumantes, a casta tropeçava nos vinhos tranquilos, em rota tortuosa de acertos e muitos erros. Mas a recompensa está começando a chegar.
E o exemplo mais moderno está nesse rótulo de design futurista da Otto, em que o equilíbrio entre terras e frutas, doçuras e taninos, parece ter encontrado seu caminho — em cada país a uva tem o seu caminho.
E tentar imitar a borgonha é perda de tempo. Mas com a crise que a mais nobre das regiões francesas sofre com a mudança de comportamento da pinot noir diante das viradas graves de eixos climáticos, pode ser que chegue uma hora em que a Borgonha comece a imitar os estrangeiros.
Nós inclusive, por dentro e por fora desse belo vinho.
Lendo sobre a chegada das ostras para as terças-feiras de Botafogo, em bares e restaurantes como o Belisco, a Casa Polvo e, nas quartas, na Cave Nacional, me lembrei das rimas do escritor irlandês Jonathan Swift, o mesmo de “As viagens de Gulliver”, sobre essas iguarias.
Mas um fato chamou a atenção até hoje sobre estes versos: além de escritor e poeta, Swift também era religioso severo, reitor da St. Patrick Cathedral, a mais importante da Dublin da época. Por isso, muita gente estranha até hoje o tempero quase erótico desse poema, que escreveu em idos de 1774. Há 250 anos, portanto.
Reparem que o autor já se referia, na época, às ostras de Colchester, bem longe da diocese de Swift, no litoral leste da Grã-Bretanha, 50 quilômetros de Londres.
Charming oysters I cry:
My masters, come buy,
So plump and so fresh,
So sweet is their flesh,
No Colchester oyster
Is sweeter and moister:
Your stomach they settle,
And rouse up your mettle:
They’ll make you a dad
Of a lass or a lad;
And madam your wife
They’Il please to the life;
Be she barren, be she old,
Be she slut, or be she scold,
Eat my oysters, and lie near her,
She’ll be fruitful, never fear her.
Bacalhau Nunca-Basta
Gajos d’Ouro
Ipanema, Rio de Janeiro
É uma das variações do mítico bacalhau dourado, o antigo “bacalhau nunca chega”, do saudoso Antiquarius, é uma criação de Carlos Perico quando ainda comandava a cozinha da Pousada Santa Luzia, em Elvas. De lã, ele veio para o Brasil e trouxe essa que se tornou uma das receitas mais pedidas de seus restaurantes, e que legou aos cozinheiros que, hoje, estão à frent da cozinha do Gajos d’Ouro. É rápida e fácil, mas exige técnica e atenção.
Ingredientes para 4 pessoas:
300g de bacalhau desfiado;
200g de batata palha;
60g de presunto cru em tirinhas;
200g de cebola picadinha;
6 ovos batidos
2 colheres de sopa de óleo
Salsa picada a gosto;
Modo de Preparo:
- Colocar em uma panela o oleo, a cebola e o presunto para refogar
- Colocar o bacalhau desfiado e mexer para misturar todos os ingredientes
- Colocar a batata palha e continuar mexendo
- Acrescentar os ovos
- Continuar mexendo sem parar e tirar do fogo antes que os ovos cozinhem
- Servir imediatamente e salpicar com salsa
Dica 1: o prato deve ficar umido, não seco, mas a batata deve se manter ainda crocante.
Dica 2: se a ideia for prepara-lo para a Pascoa, não deixe de dessalgar o lombo com antecedência, em agua gelada, com várias trocas ao dia.
Dica3: Na véspera, troque a água pelo leite.
Graça de traços orgânicos com uma das regiões mais injustiçadas do vinho, a partir de uma das uvas mais desvalorizadas pela história. Expulsa duas vezes da Borgonha por atos e decretos furiosos, o exílio da casta gamay foi o Beaujolais e, do outro lado do morro, nas nascentes do Loire.
Atrás daqueles morros ficava a área de Roanne, onde Claude Troisgros fez o seu “vin maison” que servia aqui no Rio, em idos de 2014. Hoje, é o mais barato dos bons vinhos, alguns excelentes como este Joubert Cuvée à l’Ancienne 2019, muitos frescos e sem obrigações, outros mais sérios e profundos.
Aqui, vibracao e acidez com o que é mais típico da uva: as cerejas e as companhias de especiarias todas no lugar. Nada mal para um vinho natural com cinco anos de garrafa. É uma longa jornada a cumprir depois de anos que a farsa do Beaujolais Nouveau jogou o bom nome da região na fama, mas em vez de deitar na cama, caiu na lama.
A expressão “menu executivo” está tentando melhorar seus conceitos. Demorou tanto porque tentavam rebatizar o almoço mais em conta sem mexer no essencial: a comida. Assim, surgiram os menus do tipo “mezzogiorno”, “formule sympa”, “solution midi”, “cardápio bacaninha” e outros exercícios de quem é mais criativo no escritório do que no fogão.
Mas quando o chef é inquieto, a coisa muda. E entram ideias raras como uma remoulade de crustáceos, uma vinagrete de açaí para quebrar o básico de uma salada verde, os picles de porco para acompanhar a barriguinha de porco, a couve-flor queimada para acompanhar o mais macio dos filés de pirarucu, o conceito do que é básico abre seu melhor sorriso. De quebra, o caqui – deixemos de modéstia, é a melhor fruta que existe – para dar luz e cor a um flan de mascarpone para adoçar a boca.
Onde? No Émile, em Copacabana. Quem é o chef inquieto? Camilo Vanazzi, aquele que está na foto com os cabelos esvoaçantes, ao lado deste papagaio de pirata. Entrada, principal e sobremesa, 133 pratas. Para o que é, ridículo! E com direito a um dos pontos mais luminosos do Hotel Emiliano do Rio de Janeiro. É bom ficar de olho nas mudanças sazonais, pois o cardápio vira e novas surpresas vão inspirar o mundo do almoço executivo e, mais ainda, o universo do executivo do almoço.
Já que tivemos o 4th of July… Ham & eggs, o popular “ramanegue”, tal como era pronunciado no Bob’s, o antigo, o antigo, o original, o único, o extinto. Aqui, preparo em uma versão mais suave, sem fritura, com um presunto o tipo royale razoavelmente decente, com os ovos de 4 minutos, antes de passar pela redenção do sal, pela extrema unção da pimenta-do-reino, para a elevação ao mérito da mais alta gastronomia. Nesta minha versão do clássico americano, sustentáculo da caminhada rumo ao velho este, e uma eterna homenagem às contribuições da América à nossa mesa, nesse Pork of July.
Hero breakfast. San marzanos com o mozzarella da Fazenda Santa Helena, em São Paulo: fresquíssima, “nutty”, suculenta. Pena eu não ter manjericão fresco, pois seria a caprese perfeita, inveja de qualquer capriota.
Me virei com orégano, que a massa do queijo fez brilhar. Direto dos estúdios do Talheres Lounge, em foto no estilo “chiaroscuro”, nature morte minimaliste: até Caravaggio aplaudiria. Coisas que a Queijo Mio faz pelo bom gosto – e o gosto bom.
Tutano. O foie gras bovino, a manteiga de coração pulsante. Um carinho divino no altar do bom gosto. Seria esse segredo tão bem guardado no coração dos ossos, aqui em novos ofícios, uma das primeiras manifestações do homem gourmet? Os arqueólogos dizem que sim, que a gordura rica e deliciosa, gorda, como esta do Esplanada Grill, é o motivo de tantos ossos quebrados e abertos em restos de fogueiras de sítios récem-descobertos, tão distantes entre si quanto a área da antiga Manchúria e os campos sagrados da moderna Israel.
Tudo isso está em obras como as de Reay Tannahill, em seu rápido e objetivo “Food in History”. Ou em compêndios colossais, como o Cambridge World History of Food. Neles, descobre-se ainda o rudimento do refinamento, com o desenvolvimento de instrumentos para a extração fina da iguaria, em mais um caso de que o paladar, o bom gosto e o gosto bom sempre exigiram mais do que o fogo do assador – mas a centelha do gênio, hoje, na forma de colherinhas de bojo mínimo e cabo máximo, finíssimos, que raspam aquilo que os antigos tinham como a “coragem” do animal abatido, mas que se dissolve em momento inesquecível.
O título é complicado, eu sei. Mas vamos aos pontos: Chiloé é uma espécie de Ilha do Marajó chilena, lá no sul, onde fica uma das atrações no estilo Disney: as pinguineras. É uma das atrações do local, que vão do alto dos vulcões ao mar em que os pinguins brincam sem dar a menor bola para aqueles visitantes assustados com a violência do mar entre as ilhas, muito superior em força do que os barcos a motor em que embarcamos nos prometem.
Daquelas águas vem uma paleta de frutos do mar riquíssimos, vindos daquele santuário em que várias espécies vêm procriar (os pinguins, inclusive), próximo ao encontro entre as correntes geladas do Polo Sul e as águas mornas da Corrente de Humboldt, a mesma que faz do Peru o maior centro pesqueiro do mundo. De todos os tesouros que vi, as mais reluzentes são as pinzas de jaiba (pronuncia-se “raiva”). Grandes como um tournedos, mas de paladar delicado, rico, cheio – e fresco.
E com o requinte da pinta preta da ponta da pinça do caranguejão que o fornece, quase como uma assinatura, mais ainda, um selo real da presença nobre de uma espécie que se imola no altar de nosso maior prazer. Só esse prato da foto valeu a visita a Chiloé, que exige um dia inteiro de carro e ferryboat – não caia nas arapucas turísticas, caras nos dois valores mais importantes da área – tempo e dinheiro.
Peixaria Moderna é a assinatura dessa casa no chiado, em Lisboa. Vá de táxi, para evitar a procura por uma vaga impossível de carros. E para aproveitar a caminhada, a partir da Baixa, subindo o Chiado, inclusive pela sugestiva Rua do Alecrim. Do lado de for a, o SeaMe parece uma loja de moda praia.
Na porta, o manequim de uma pescadora, bustos desnudos mas elegantes, lenço chique como roupa, é a senha para o lado hype da casa. Na entrada, antes de chegar ao impressionante painel de peixes frescos, passa-se por um lounge e a cabine do DJ, que dá o clima a partir do entardecer.
Já lá dentro, o cardápio é enorme, mas a graça é escolher seu peixe ou seus mariscos a dedo. Nada de bolinhos de bacalhau encharcados de azeite – os portugueses abominam essa prática. Peça as cadelinhas ou suas parentes, as amêijoas. Ou os lingueirões, com as conchas em forma de navalha.
E, claro, as ostras, que podem vir de duas regiões: a do Sado, próximo ao estuário do Tejo, na região de Setúbal, ao sul de Lisboa, por onde passa a corrente marítima que vem do norte. A outra, mais badalada, a de Rias Baixas, no Algarve, extremo sul do país, muito próximo da entrada do Mediterrâneo.
Deliciosas, adocicadas. Ou criações como o sushi de sardinha morna com flor de sal do Sado, no Algarve. Espetacular, com direito a sushiman especialmente dedicado ao traabalho. Do Sado também vem o capítulo lusitanos das ostras frescas, com destaque para essas, da área de Setúbal, do lado de Lisboa. E as de Rias Baixas, no Algarve, extremo sul do país, muito próximo da entrada do Mediterrâneo.
Para o prato principal, quatro pessoas podem dividir um polvo à lagareira. Ou peixes no sal, desesperadamente frescos, como o desconhecido veja ou os badalados cantaril ou o sargo. Dispense a sobremesa e pense que a viagem a Portugal não necessariamente envolve o bacalhau.
Hotel das águas, estância hidromineral, na descrição técnica e fria como a água que sai da torneira. Por trás dessa fachada monumental, transbordando neoclássico, está um dos hotéis mais elegantes e modernos de Portugal. Para quem quer a referência de uma água Vidago, dou a vizinhança nobre: Pedras Salgadas, considerada a melhor água mineral do mundo.
Nos quartos, as linhas são modernas e contemporâneas, mas respeitosas com o que a clientela moderna exige. Conforto e aquele silêncio de fazer zunir os ouvidos cosmopolitas. Mas com a conectividade que mesmo o isolamento dessea área de Trás-os-Montes, a mais isolada de Portugal, exige.
O Vidago é um palácio de 1910, mas que esconde um spa de irritar qualquer hotel boutique, com um campo de golfe de 18 buracos que entrou no circuito internacional, o do design, inclusive. É também a marca de uma água elegante, distribuídas a poucos, como o restaurante Belcanto, em Lisboa.
Tentamos nossas tacadas, arriscamos nosso swing, mas estava tão lotado que a maior geração de golfistas brasileiros deixou de se revelar. Deixamos pra próxima.
Escada é uma coisa. Essa escadaria é outra. Tem forma de abraço de boas vindas. E de despedidas, nesse caso, nunca de adeus, mas de um emocionado até breve. #vidagopalace (Detalhe cultural: o que tem ali no meio é afresco pra valer, chequei, meti a mão, em afago daqueles que mostram que o até breve é pra valer).
Um autêntico “hero breakfast”? Entrevero, assim mesmo, sem a letra i da grafia formal. Mais do que um clássico catarinense, é o melhor prato à base de pinhão do mundo, com a combinação animada da nossa noz mais suculenta, linguiça, charque e toucinho, fogo alto, frigideira firme, para liberar cores e sabores. Bandeira catarinense injustiçada na seleção da culinária brasileiro, brilho no cardápio do restaurante da vinícola Monte Agudo.
4 Monos, quatro macacos, quatro amigos, quatro castas em quatro míseros hectares ao pé da Sierra de Gredos, uma cordilheira de visão alpina, que enganaria a muitos na imagem, se dissessem que era Mendoza. Ali, em altitudes que beiram os mil metros, cultivam vinhas velha da garnacha, a cariñena, a morenillo e um pouco do syrah que compuseram este rótulo, o GR-10.
Vigoroso mas fresco, terroso e aromático, fundo erbáceo mas com muita fruta vermelha de licores, como a ginjinha e o marraschino – e um toque funky, um possível brett, em torno da acidez esplêndida, brilhosa, radiante, em um dos fatores que dão leveza ao vinho, mesmo com seus 14% de álcool.
A cor é de um rubi misterioso, mais profundo, mais púrpura, mais real, mais monárquico, como convém a um vinhedo nas vizinhanças da cortes de Espanha – sim, Vinos de Madri é uma denominação rara por aqui, mais ainda neste caso, em que a produção é mínima e que, por ser estritamente orgânico, é especialmente disputado por outros mercados.
RÓTULO: 4 Monos GR-10
PRODUTOR: 4Monos Vinicultores
SAFRA: 2019
PAÍS: Espanha
REGIÃO: Vinos de Madrid
SUB-REGIÃO: Sierra de Gredos
CASTAS: Garnacha, Cariñena, Morenillo, Syrah
ESTILO: Cor de borgonha
CLASSIFICAÇÃO: ÁLCOOL: 14º
VINIFICAÇÃO: Orgânica, sem intervenção, leveduras locais
MATURAÇÃO: Fudres e outras barricas grandes, já de vários usos
FORMATO: Garrafa de borgonha, rolha original
QUEM TRAZ: Cellar Vinhos
Já estava com o post pronto quando eu soube que hoje era Dia Mundial do Gato. E é um desses distintos indivíduos, de manto e lança de guerreiros, meio com cara de jaguaritaca, que estampa um vinho laranja surpreendente na qualidade e no preço: Folklore Naranja, menos de 100 pratas, de perfume e paladares intensos, com o doce da laranja e o ácido do damasco, que a uva trebbiano entrega tão bem, em textura que pede um prato e profundidade que faz agradecer pelo copo. De volta ao rótulo, valem as simbologias seculares e as estratégias modernas, todas vencedoras, que já descrevi aqui em “Vinho é o Bicho”
Sim, nossos rosés estão correndo por fora e já concorrem com os brancos nacionais e com muitos de nossos espumantes. Um deles é esse aí da foto, o Vinhética Terroir. Pura Serra Gaúcha, é o achado de um francês, Gaspar Desurmont, que vive em um contêiner, quase como eremita, do lado de um dos vinhedos que ele mesmo descobriu. São vinhos puros, controversos, interessantérrimos e, como ele mesmo proclama, éticos.
No corte, um conjunto inédito para um rosé, como o cabernet franc, a teroldego, a merlot e, para a condimentação clássica, o syrah. Próprio para aqueles petisquinhos de queijos amarelos, salames ou, melhor ainda cotecchinos. Fresco, vinificado só no aço, por três meses, sem barricas e seus excessos: tomo puro, mas, na mesa, segura ostras e camarões ao alho.
É um garage wine, que, na data de hoje, é um dos mais baratos do mundo, na faixa do 80 reais. Tem prova deles e de outros da vinícola nesse fim de semana de 15 de julho, no Festival de Vinhos do Botafogo Praia Shopping. Entrada gratuita e, após as formalidades cumpridas pelo aplicativo, é chegar no estande da @kn.vinhos para brindar e conferir.
Salicórnia, quem diria, que conheci nos anos 80 como enfeite e leito de ostras frescas e pasto dos cordeiros normandos e bretões dos rebanhos medievais, virou modinha. Há coisa de uns vinte anos, estava no “menu experience” que valeram ao Le Cinq a quinta estrela do Michelin. Meninos, eu vi.
O crocante do tipo vagem, bem salgadinho, aqui no crudo de atum com cítricos, do Jerome Dardillac, chef do Marine, é bem típico daqueles solos que as águas salgadas inundam na maré alta. Na maré baixa, os cordeiros se banqueteiam com a erva. O resultado está no clássico parisiense “gigot de pré salé”, algo como “pernil do prado salgado”.
Quando minha mãe perguntava ao “boucher” como temperar a peça antes do forno, a ordem era uma só: não tempere, o pré salé já fez isso. E não dava outra: paladar ligeiramente salgado e ainda amansado por outra sugestão do açougueiro: assar com uma travessa de água embaixo. De comer com colher.
Ingrediente, simplicidade, tempo, delicadeza. Mais um episódio da série “gastronomia é isso aí”: salicornia dreamin’
Não é de hoje que a região de Lisboa vem levantando a bandeira do que há de mais moderno no vinho português. Não era assim, mas o jogo mudou. Mais ainda com vinhas novas, frescas e vibrantes de outra “tradição” cada vem mais moderna, a uva arinto, que começa a exigir a sua condição de grande uva branca de Portugal. O resultado é um vinho tão versátil que pode ir das ostras à vitela, enriquecendo as harmonias com flores e frutas e a boca com textura e riqueza – e com leveza que nos leva, facilmente, a pedir uma segunda garrafa.
A vinícola Pancas, que a Bermar está trazendo, junto com outras joias pinçadas dos “nouveaux terroirs portugais” já é o vinho de taça do Gajos d’Ouro, em honra nada gratuita, já que um dos donos da casa é sommelier. É um rótulo que contribui com o resgate da quele que era conhecido como “vinho do oeste”, de uma área que sempre fez vinhos de varejo, que, costumavam viajar em vagões sacolejantes para serem engarrafados em áreas tão temerárias quanto a antiga Rússia.
Hoje, a joia está entre os nossos dedos, com vinhos rejuvenescidos não somente na garrafa, mas também no rótulo, com design guardião, no álcool baixo – 12,5% – e até na vinificação, que traz as uvas ao estrelato, com nenhuma madeira e um máximo de exposição em suas borras, sempre em tanques de inox. Esse é o perfil de um vinho de Lisboa, que a própria capital portuguesa celebra em seus bares, já que é exatamente este o estilo que se serve em taças aos jovens consumidores patrícios.