Não dá para levar muito a sério a onda das flores comestíveis. Embelezam, sim, mas são raras aquelas que não arruínam a salada fresca com um travo além do amargo medicinal – ou à sobremesa, quase sempre com uma violeta gentil, mas de paladar agudo, quebrando a aridez agreste de uma crème brulée esturricada. De qualquer forma, estando na contramão de sua função na natureza ao chegar ao prato, a flor tende a comprometer a estrutura do prato que pretende decorar. O contrário pode acontecer, claro, com as descobertas de um Michel Bras ou as negociações de sabor de um Anduriz. Fora isso, raríssimo.
Mas a busca pelas delicadezas do paladar envolve curiosidade e desprendimento. Nem que seja para queimar a língua – e quem nunca a queimou? -, especialmente a desse primeiro parágrafo, calcinada pela surpresa.
O manjericão da varanda florou forte e denso. Uma pétala não faria falta e, dedos em pinça, foi direto para a língua. Não sei se é o adoçante perfeito, mas sei que é o que muitos procuram: açúcar intenso mas delicado, largo, generoso, sem enjôo. Aquela folhinha me lembrou a bala toffee, aquela safada, mas deliciosa, da porta do colégio de meio século para trás. Não tenho idéia do que fazer com aquilo, em que usar, muito menos em que quantidade. Mas o fato é que, enquanto durar essa primavera sem caráter que é o nosso inverno, as flores vão ter audiência matinal garantida. Mais ainda do que as folhas que a planta recomenda.
Volta e meia, lanço uma brincadeira no instagram sobre o meu café da manhã, lembrando o absurdo de não termos ingredientes como shoyu, ovas, coentros, pimentas e outros condimentos, massas e seus ensopados, carnes como o de cordeiro e seus molhos. Não é só uma debochada com o senso comum – odeio café com leite e pão com manteiga de manhã; depois, tudo bem – é também uma certa inveja de outros povos, que têm alguns desses ingredientes como deliciosos fundamentos de seus desjejuns matinais.
Americanos e ingleses fartam-se em seus breakfasts tradicionais, com lingüiças (com trema, claro), hashbrowns e até feijões. O Sudeste Asiático acorda com o conforto de uma sopa com massa. Os marroquinos despertam com uma fritada em gordura de cordeiros. Os nórdicos abrem seus pães para ovas e arenques defumados. Qualquer “continental breakfast” de hotel grande tem até cogumelos, aspargos e tomates grelhados. Cadê as azeitonas dos turcos, os pepinos dos gregos e, já que estamos onde estamos, o arroz dos chineses, os feijões dos egípcios?
Enfim, os posts geram sorrisos, gracejos e reações como a uma piada. Ou risotas do gênero “esse cara tá louco pra aparecer”. Mas também já gerou discussões séria e definitivas, especialmente um dia em que planejavam um café da manhã pra mim: queijinhos, pãezinhos, tapioquinhas, granolinhas, leitinhos desnatados, prensados de peru e outras decadências do paladar.
Retruquei já sem paciência: “quer me acordar feliz? Me serve um filé à parmegiana ao acordar”. O clima pesou. Foi exagero, eu sei, mas em termos. Afinal, quantas vezes já não preparei meu pão francês com um resto de picanha fatiada, de passagem leve na manteiga crepitante da frigideira? Às sete da manhã, claro…
É coisa de quem bebe, eu sei. Mas o dia começa com novo vigor, como aquele que descobre que tem um resto de pizza na geladeira e passa o resto do dia sorrindo, não somente pelo sabor, mas pela transgressão das regras ortodoxas. E pela fuga daquela pasta que inistem em chamar de ricota. Ou aquela borracha que tentam nos convencer de que é um queijo minas.
Mas a conversa acabou ali. Tanto o café da manhã quanto todas as demais refeições que estavam sendo planejadas foram canceladas para sempre. E olha que eu nem comecei a falar em bebidas matinais…
No último dia 6 de agosto, Andy Warhol completaria 85 anos. Mais ou menos na mesma data, um dos ícones de sua coleção – e da própria gastronomia -, a sua concepção da lata de sopa de tomate Campbell’s completa 45 anos. Jornalista adora data redondinha e quando a pauta também chega fechadinha, o orgasmo editorial é inevitável. Não sou exceção.
Especialmente agora, que a Perrier, fleugmática diante da exclusão da galeria de ícones que inspiraram o artista (em bebidas, só a Coca-Cola o foi), lança uma coleção de rótulos que relembram o traço serigráfico desse que, menos pintor e mais ilustrador, menos artista e mais publicitário, tornou-se uma influência do que entendemos como pop art. A ação traz um rastro de nobreza: a Dom Pérignon, que lançou uma coleção com a estética do designer, em idos de 2010.
Mas se a Coca-Cola esteve entre as fontes de inspiração do cara, é justo que a Perrier também esteja. Tem alcance, é referência, é marca de design, é chique – no desenho de Warhol, até a banana do disco do seu projeto musical, o Velvet Underground, tornou-se estampa de camisetas descoladas.
Formas de se pensar a respeito, há várias. Conjecturas, mais ainda. Em Warhol, a Perrier tem o alcance de uma Marlyn Monroe ou de uma Elizabeth Taylor; se Elvis não morreu, a Coca-Cola, também não. E, em uma época de republiquetas, a banana chegou tão prosaica e debochada no traço do artista quanto a referência (nunca uma homenagem) a personagens tão patéticos quanto Mao Tse Tung ou Mickey Mouse.
Tem certas pesquisas que merecem mais profundidade. Uma delas é a que me intrigou: Espaço Açores, que Joe Best, um chef rock’n’roll, filho de Sintra me chamou a atenção quando fiz a matéria Lisboa Remix, para o Caderno Ela, do Globo. Na realidade, ele, mui justamente, esculachou uma bobagem que eu escrevi. Mas como tudo por aqui acaba em paladar, no fim, todos sorriram.
As ilhas me dizem respeito. Já namorei filhas de madeirenses e de açorianos. Ouvi as histórias. Salivei com os quitutes. Além disso, Cristiana Beltrão acabava de voltar de Funchal, com matérias espetaculares, que ecoaram também no Globo, na EatinOut e, claro, em seu site de referência, o Bazzar.com.br. Não continue a leitura sem ler o que ela escreveu. As novidades eram frescas, portanto. É claro que eu tinha de pesquisar o que seria o Espaço Açores.
Na pressa que nos conduziu durante o roteiro gastronômico em Lisboa, o acelerador de Antonio Perico passou rápido pela Ajuda e só deu pra ler o letreiro. É a dor no coração que qualquer destino me causa, o de não poder visitar tudo o que queremos – pior, o que precisamos. Mas que Mr. Best me aguarde.
E eis que falo dos hambúrgueres que experimentei em Portugal e do orgulho em que se aplicam ingredientes locais. O do Espaço Açores, não provei, mas gostei. De dois deles, aliás.
O primeiro, o da foto ao alto, em que J.B. nos traz a carne dos Açores, uma vitela lardeada e guarnições como o patê de cavala, rolinhos de biqueirão, camarão e molho 9 ilhas (olha o orgulho aí…), à base de pimenta da terra batida com maionese. O da foto de baixo, um autêntico despertar da montanha, com a vitelona moída, cheddar, pasta de fígado, molho de iogurte, sour cream e molho de iogurte. Será meu pequeno (grande) almoço na próxima baldeação por Sacavém.
Nada como a cabeça fresca de um estudante para aliar o agradável com o agradável e, quando dá, também com o útil. Mas como uma das coisas nesse mundo que realmente abrem os apetites são as boas idéias. Aplicáveis ou não, como esses rolos que transformam qualquer bobagem à base de massa em um artigo digno da vitrine de uma Louis Vuitton.
A alegre brincadeira acima veio do grupo de estudos da Piet Zwart Institute, em Rotterdam, e foi batizada de Altered Appliances, assim mesmo, em inglês, muito embora o objetivo seja a decoração de um dos ícones da culinária dos países baixos: os waffles. O lançamento aconteceu em outra capital do paladar, Milão, durante o Saloni desse ano, dentro da coleção da Ventura Lembrate.
Do waffle à pizza, o equipamento é gravado a laser, para traduzir à risca a fineza da equipe, que também é multinacional, ítalo-holandesa: assinam o projeto Joanne Choueiri, Giulia Cosenza e Povilas Raskevicius (eu dou o crédito, ao contrário de certos canalhas que usam minhas fotos e não conhecem as conseqüências legais do ato).
As boas brincadeiras em torno da uva sauvignon blanc giram em torno da descoberta de rótulos que não lembrem aquilo que se tornou comum no cone sul: a semelhança de alguns desses vinhos com um copo de suco de maracujá Maguary. Se a França tem honrosa vantagem (e obrigação) nessa luta, a Nova Zelândia aparece como outro salvador da pátria da casta, com rótulos como o Dog Point.
Nariz finíssimo e um travo de goiaba na boca, que tem um final seco e elegante são a surpresa desse vinho da área de Marlborough, encontrado na carta do Bazzar, em Ipanema, e assinado por Ivan Sutherland, já acostumado a medalhas (entre elas os 93 pontos de Robert Parker) desde a que conquistou em Sydney, pela equipe de remo da Nova Zelândia.
Em seu livro Food in History, a historiadora escocesa Reay Tannahill nos traz uma cena diferente das caçadas romanceadas de homens neolíticos. Romancista e gourmet que é, ela imaginou os pequenos prêmios que os caçadores se dariam o direito a degustar, no ato da vitória (ou da conquista, já que disputavam presas já abatidas com as hienas), itens de especial paladar, antes de levar a carcaça do animal para o seu grupo. E citou alguns desses prêmios: o fígado, o timo e as gorduras atrás dos olhos. Hoje, 70 mil anos depois, o hábito de degustar miúdos se mantém como um delicado garimpo. E refinou-se, dando a vísceras e tripas, através de iguarias como o foie gras e raridades como o ris de veau, um lugar de grandeza nas artes do paladar.
Tecnicamente, os miúdos são formados por todos os órgãos retirados da carcaça dos animais abatidos, deixando-lhes as carnes musculares que integram a rotina da mesa ocidental – lombos, pernis, filés, costelas. Mas se a rotina é tudo aquilo que um gourmet não espera de um restaurante, é lá que podem ser encontradas os mais finos cortes de vísceras, quase sempre preparado de forma tradicional. Ou, melhor, de modo ancestral. É o caso de tripas e dobradinhas, de iscas de fígado e assados de molejas e de petiscos finos como bolinhos de moelas e miolos. E de preparados quase cerimoniais como buxadas e sarapatéis, que mostram uma arte delicada de preparo por trás do aspecto quase sempre rústico.
Não era o coração. O objeto de desejo dos machos dominantes das nações caçadoras era o fígado, um órgão que sempre inspirou a coragem (em japonês, são sinônimos: kimo) e a bravura que o vencedor mais queria absorver de sua presa – as humanas inclusive. Com as civilizações já estabelecidas, o fígado passou ao nível da delicadeza, ao ser transformado em foie gras, primeiro por egípcios e levantinos, que os teriam disseminado a romanos e aos gauleses, até hoje os melhores artistas na sua execução. “Não tem nada que se compare ao foie gras francês, que tem uma gordura mais fina e um paladar mais intenso”, revelou, em entrevista sobre outra coisa, a chef Ludmilla Soeiro, que mantém um trio de degustação da fineza no restaurante Zuka.
Nos livros de Apícius, os miolos de cordeiro estão em destaque na receita de um salsichão que o autor denominou cervelas. Até hoje, a especialidade integra a coleção francesa de salames e embutidos. Entre eles, estrelas como as andouillettes são preparadas com intestinos delgados de porco. A briga de uma grupo de cidades pela origem da receita já levou a questão às barras dos tribunais alsacianos.
O resgate de todas essas receitas é motivo de orgulho entre os europeus. Que o diga o chef inglês Fergus Henderson, dono do restaurante St. John, em Londres, que se tornou uma meca dos amantes dos miúdos – e seu livro The whole beast (“O bicho inteiro”) o alcorão desta autêntica religião. “Se um dia for condenado à morte, quero que o Fergus prepare minha última refeição”, elogiou o apresentador Anthony Bourdain, no prefácio da obra. Nos programas de televisão que apresenta, Bourdain não se cansa de exaltar a textura de vísceras, tripas e outras descobertas, em momentos em que o ex-chef nos poupa de seus devaneios filosóficos, que remexem com os miúdos de qualquer um.
Abaixo, um glossário de miúdos, com a participação luxuosa de aparas de aves, como pés e cristas. O conteúdo foi pinçado da interminável Enciclopédia dos Sabores, que relacionará, quando um dia ganhar um ponto final, mais de 700 itens dedicados ao tema, entre os cortes e os pratos, suas curas e conservas. Contribuições serão bem-vindas por mais miúdas que sejam.
O PRIMEIRO (E, ATÉ AQUI, ÚNICO) DICIONÁRIO DOS MIÚDOS
Abats, abattis
Do verbo francês “abattre”. Sub-produtos específicos do abate de aves, são os miúdos de aves galináceas ou de caça, principalmente o coração, a moela, os rins e o fígado, aparas como a cabeça e o pescoço, as asas e os pés, além da crista e dos testículos de galos. Em países asiáticos, onde o senso de economia exige que todo o animal seja processado em alimento, são ingredientes da mesa cotidiana, que inclui ainda usos extremos, como línguas, palmas de pés, olhos, bexigas, intestinos cheios e até órgãos sexuais. No Brasil, é um dos fundamentos do xinxim de galinha. São fartas as fórmulas e receitas com miúdos, seja nas mãos da cozinheira humilde, ou na função do grande chef, com destaque para os recheios das próprias aves, rilletes, tortas e embutidos e para formarem terrines e patês. Em ‘blanquettes’ ou em ‘vol-au-vents’, guarnecidos por trufas ou cogumelos finos, os ‘abattis’ sempre foram requintes dos mais exigentes cardápios reais; na mais alta hotelaria, Escoffier dedicou aos abattis cinco receitas: à bourguignonne, chipolata, aos nabos (em receita destacada também por Dumas), printanier e patê, embora seja farto seu uso em caldos e sopas, como recomenda Paul Bocuse: “Faites préparer et brider la poule par votre volailler et demandez-lui de vous donner les abattis … car vous les mettrez à cuire dans le bouillon, ce qui améliorera encore sa saveur”. E a lição foi seguida pela vanguarda da culinária do início do século XXI, com o uso de miúdos de ganso no caldo de cozinha do chef Ferran Adrià. A expressão ‘abattis’ – com dois T, como indica o verbete do dicionário da Académie Française – não deve ser confundida com ‘abats’, que definem os órgãos dos animais superiores.
Achuras
Ingrediente comum nas parilladas de argentinos e uruguaios, é o conjunto de vísceras que crepitam na chapa, especialmente as mollejas (timos),os riñones (rins) e os chinchulines (intestino delgado).
Adidas
Divertidíssima denominação que os filipinos dão ao pé de galinha refogado, vendido nas ruas de Quezón e, na maioria dos casos, exportada do Brasil. De fato, quando a peça é levantada de seu ensopado, os dedos da galinha se juntam para formar um grafismo idêntico ao da “marca das três tiras”.
Amourette
Poética denominação que os antigos receituários franceses conferiam a tutanos de cordeiros e vitelas.
Andouillette
Festejada variedade de salsicha de intestinos e estômago de porco condimentados e cozidos, ou seja, a mesma base da andouille. Grelhada ou empanada e frita, é servida normalmente com batatas fritas (86 francos na Brasserie Lipp) ou com sauce béarnaise, como sugere a carta do Pied de Cochon. Aparentemente simples, a fórmula de preparo da andouillette requer a lavagam cuidadosa das vísceras e o uso exclusivo de porco, além de longo cozimento em caldo de carne. O obedecimento dessa seqüência dá à andouillette o direito de ser denominada como autêntica e de envergar a qualificação A.A.A.A.A. (Association Amicale des Amis des Andouillettes Authentiques).
Animelle
Ou rognons blancs, dizem os franceses dos testículos do boi. Em italiano, a expressão refere-se ao tutano de espinhaços e ossos longos como o ossobuco.
Ankimo
De 鮟肝. Fígado de tamboril, que os japoneses tratam e cultuam como “o foie gras dos mares” – no país, ‘kimo’ fígado e coragem são sinônimos. Os experimentados relatam uma textura sedosa, semelhante ao do fígado de vitela, mas de sabor menos intenso. Seu preparo exige pouco esforço, além de uma marinada em saquê e mirin, limpeza das veias e enrolamento em plástico ou papel de alumínio, antes de ir à fervura – similar ao tratamento que o foie gras recebe no Ocidente, aliás. Pronta, é fatiada e servida como um finíssimo petisco, com molhos como o ‘ponzu’ e uma salpicada de ovas de peixe. No varejo, o pacote de 300 gramas sai por cerca de 20 dólares.
Bandulho
O mesmo que ‘rúmen’ ou ‘pança’. Diz-se do primeiro dos quatro compartimentos do estômago de ruminantes. De parede mais grossa que as demais, é usada no preparo de certas dobradinhas e especialidades como o pieds et paquets dos franceses e o haggis dos escoceses.
Caracu
Como é conhecido em todo o cone sul o tutano e seu corte de osso, indispensáveis para a composição do ‘puchero’ clássico.
Chitterlings
Intestino delgado do leitão ou o seu cozido em molho picante de tomates. É prato de origem inglesa, adotado no sul dos Estados Unidos. Tal como no caso da feijoada brasileira, sua origem é atribuída à surrada fábula dos escravos, que recebiam como sobras dos senhores de ‘plantations’, que guardavam para si as partes mais nobres do porco, deixando os restos aos pobres trabalhadores. Bela, mas sem qualquer fundamento, a lenda se mantém viva pela credulidade geral, que despreza os bons costumes europeus (dos franceses na Louisiana) de aproveitar praticamente tudo que o porco tem a oferecer. Mais do que um hábito, o aproveitamento é uma conseqüência natural das das crises de abastecimento, que obrigava senhores e, aí sim, escravos a se alimentar do que estivesse disponível.
Chinchulines
Do quéchua “ch’únchull”, tripa, denominação que platinos conferem aos intestinos de animais de abate, especialmente o boi. É relacionado nos açougues como uma das ‘menudencias’ (miúdos) e integra a autêntica ‘parillada’ local, ao lado de outros cortes alternativos, como a ‘molleja’ e as ‘criadillas’.
Coifa
Ou crespina. Tecnicamente, é uma das partes do estômago de bois e vitelas, que fornecem a dobradinha de aparência reticulada como a de uma colméia.
Coração
Miúdo de maciez e tenrura admiráveis para quem se exercitou em cada segundo da vida do animal. Entre os franceses, há preparados com os corações de gansos, patos e pombos, antes da galinha, único admitido nas churrascarias do Brasil, onde é tratado como não deve: é esturricado até que perca a textura e a delicadeza. Entre os povos andinos, onde há anticuchos autênticos, de rua, lá estarão aqueles preparados com fatias de coração de boi.
Crépine
Tecido gorduroso que envolve os intestinos de porcos ou vitelas. São usados para manter a forma de bolos de carnes picadas, terrines ou quaisquer preparados que possam se soltar durante o cozimento. Podem se dissolver em água ou dar padrões decorativos em assados.
Criadilla
Em espanhol, testículos de animais de abate (boi, vitela, porco, carneiro), usado em ocasiões especiais, como as festas de abate (‘matanza’) para o preparo de assados e ensopados. Entre os argentinos, é um dos cortes fundamentais da autêntica ‘parillada’. Na Andaluzia, é um dos elementos da carne de lídia, do touro morto na arena.
Crista de galo
A própria, a crête de coq dos franceses, que dá realeza aos galos que, tal como na expressão pejorativa, empina a sua crista. Na cozinha, é uma delicadeza, especialmente após assada na grelha ou refogada com outros ingredientes, como faz Alain Ducasse com tanta graça, dando ao corte uma textura semelhante à da língua do boi.
Dobradinha
Iguaria que divide o Brasil em dois grupos de fanáticos: os que idolatram e cultuam esse ensopados de estômagos de boi, feijões brancos, paios e costelas; E os que a ojerizam – a maioria esmagadora deles, formada pela sub-legião dos que não provaram e não gostaram. No varejo, a explicação do nome: os cortes dobrados como mantas, dos tecidos mais macios do complexo estômago do boi.
Faceiras
Forma gentil de denominar os cortes carnudos ou cartilaginosos da face do boi, sejam bochechas, sejam os narizes, mais conhecidos como focinheiras.
Feng shao
De 鳳爪, que significa, literalmente, “garras de fênix”, fantasiosa referência ao aspecto deste petisco preparados com pés de galinha grelhados puros ou empanados, preparados com molho de ostras e servidos com sementes de gergelim e molhos picantes como o de feijão preto. Mesmo sendo os maiores produtores mundiais de aves, os chineses têm de importar o corte para suprir a demanda interna e recorrem a recantos onde, apesar dos problemas de subnutrição, os alimentos são desprezados. O Brasil, claro, é o principal destes fornecedores.
Fígado
Uma das mais polêmicas e interessantes das vísceras comestíveis. Tem perfume, sabor e consistência idolatrados por uns e execrados por vários Explica-se: o bom fígado deve ser muito fresco e extraído de animal abatido muito jovem – vitela, leitão, cabrito ou cordeiro -, já que o órgão armazena, ao longo da vida da rez, uma diversidade de toxinas e substâncias que interferem no seu real sabor suave. Se for cortado de animal velho, terá cheiro forte, sabor rústico e textura polvorenta . Tradicionalmente, o fígado fresco é considerado na cozinha somente na época dos abates, à minuta, de preferência. Depois disso, passa a ser apreciado na produção de embutidos que fazem a fama de regiões inteiras, como no caso dos leberwurz alemães. Em algumas zonas pesqueiras, fígados de peixes como o bacalhau e o tamboril (‘ankimo’) são apreciados em refogados ou até crus, especialmente quando indicados por seus duvidosos fins terapêuticos. O “Trésor de la Langue Française” cita o figado de arraia como exemplo de guarnição de canapé. Os fígados frescos de aves recebem tratamento semelhante ao dos mamíferos e, nas mesmas épocas de abates, proporcionam pratos como as ‘abeignades’, feitas com o fígado de patos ou gansos. Nada que se confunda, porém, com o ‘foie gras’, um tributo divino à criatividade do homem, que empanturra gansos e patos com quantidades formidáveis de frutas, grãos e farinhas, causando o aumento dos fígados em até dez vezes o seu tamanho original e proporcionando textura, paladar e untuosidade inigualáveis. Segundo os dicionários, a expressão viria de fegatum, latim para fígado, a mesma de figo, a fruta.
Foie gras
Francês para fígado gordo – pronuncia-se “fuah” uma provável corruptela do grego “fukon”, cujas prosódias e corrupções latinas teriam levado ao formato atual, por vias do arcaico “foye”. As teorias mais recentes demonstram que a técnica de desenvolver o fígado dos animais seria uma descoberta pelos antigos hebreus, que a teriam disseminado entre os egípcios – ou vice-versa – a partir da observação do próprio comportamento dos animais na época, que se alimentavam, às vezes até o derradeiro fastio. Por outro lado, Plínio descreveu os gansos que chegavam da Gália em grandes tropas. Já nessa época, era um símbolo de status disputado entre nobres e generais, entre eles Cipião, o Africano. Já entre os franceses, a disputa entre os alsacianos de Strasbourg e os gascons do Périgueux divide os cronistas. Alguns, como André Castelot e Guy Christian, atribuem a invenção do patê de ‘foie gras’ e de suas primeiras variações a um certo Jean-Joseph ou Jean-Pierre Clause, cozinheiro particular, de Strasbourg, que, em 1782, teria apresentado um aprimoramento da massa de fígado e ainda o seu tratamento, envolvendo-o en croûte e temperando-o com trufas. Os ‘périgourdins’ defendem-se com antigas receitas de livros que datam de pelo menos 40 anos antes do anúncio do alsaciano. Antigo ou não, a técnica era uma só: sobrealimentar as aves para provocar uma reação hepática, que eleva o peso do fígado em até um quilo além dos poucos gramas originais. Os detratores do processo já criaram dezenas de histórias para impressionar os crédulos. Tais relatos, quase tão antigos quanto, a cultura do foie gras, chegaram aos verbetes do dicionário de Alexandre Dumas, que lembra a petição do conde de Courchamps à câmara de Estrasburgo, um dos templos da iguaria, em benefício das aves. Caro em custo e custoso em empenho, muitos desistem do foie gras, que exige rapidez na limpeza, atenção nas marinadas, delicadeza nas fórmulas e numerário dos clientes.
Frattaglie
Os miúdos, para os italianos.
Fressura
Orgãos maiores como os pulmões, coração e fígado de boi, vitela, porco, cordeiro ou cabra. São preparados em festivais de outono por toda a Europa, época em que acontecem os abates e todas as carnes são aproveitadas. Dáí surgiram clássicos como o sarrabulho e o sarapatel, o haggis e embutidos como o liberwurz e as andouillettes.
Miolos
Delicadíssimo miúdo de qualquer dos animais de abate, do boi ao galo. Gorduroso e untuoso como um patê, proporciona bolinhos inesquecíveis ou integra ensopados de alto nível. Em Apícius, era a matriz do ‘cervelas’, que manteve sua denominação até hoje, já entre os franceses.
Mocotó
Do tupi mboko´tog, que balança. É o caso das cartilagens e articulações das partes correspondentes à canela e ao tornozelo em bois e vitelas, que batizam um festejado e tremelicante cozido do mesmo nome, festejado em todo o país, especialmente no Nordeste, onde também pode ser encontrado em restaurantes sob as rubricas mão-de-vaca (Cascudo d’après Sodré Viana) ou chambaril (Houaiss). A mucilagem que libera com o cozimento fornece uma gelatina protéica usada como remedio, inicialmente, e como doce aromatizado e indutrializado sob a saborosa denominação de geléia de mocotó.
Moela
Seção do estômago das aves – galinha, pato, peru, ganso, principalmente – onde os grãos são triturados por contração e por um depósito de pedrinhas e cascalho. É um tecido saboroso mas fibroso, que exige preparo cuidadoso em fogo lento para que não enrijeça. Serve a recheios da própria ave, refogados de miúdos ou, quando cozidos e fatiados, à guarnição de saladas de folhas. Em francês, gésier’, expressão que inspirou o inglês ‘gizzard’.
Molleja
Uma das achuras que uruguaios e argentinos assam na chapa, é o timo de boi, cordeiro ou porco, de sabor e textura finíssimas. Na linguagem internacional, trata-se do ris de veau.
Offal
Entre os ingleses, o universo dos miúdos.
Oysters
Ou mountain oysters ou ainda prairie oysters, Literalmente, “ostra da pradaria” – não o molusco, mas os testículos de animais de abate (boi, vitela, porco, carneiro), usado em ocasiões especiais, como as festas de abate (‘matanza’) ou no ato da castração de reses, para o preparo de fritos, assados e ensopados. Entre os argentinos, é um dos cortes fundamentais da autêntica ‘parillada’. Nas comunidades mais humildes, é comum encontrar a peça inteira, embora os expertos recomendem a limpeza de nervos e das camadas superiores, para o alcance da maior maciez da peça.
Pajata, pagliata
Está tudo aqui.
Pão do boi
Denominação que os testículos do boi ganham no interior do Brasil.
Pé de galinha
Ou de outras aves de granja como o peru, o pato e o ganso. O Brasil os exporta em massa para os chineses, que dão às peças a poética denominação de “patas de fênix”.
Pescoço
Apara delicadíssima de aves assadas, entre elas o pato, o ganso e, sempre esquecido e descartado na mesa de Natal, o peru. Tem a carne tão delicada e intensa quanto a das asas e pode ser degustada na mão ou desossada e recomposta para a guarnição de entradas finíssimas.
Rins
Um dos mais nobres dos miúdos da vitela, requer uma lavagem severa com limão mas um preparo delicado, além de acompanhamentos que harmonizem com sua textura leve – a falta de cuidado no preparo torna-o imastigável. Tem um sabor quase adocicado e mais nobre que o fígado. Não há região de tradição pecuária que não ostente no cardápio, como um dos seus emblemas patrióticos, uma receita de rins.
Ris de veau
O timo de vitela dos franceses, é o recheio nobre de pastelarias finas como o vol-au-vent, que integraram os cardápios de bodas de papas e imperadores. Os ingleses reconhecem a iguaria como sweetbreads. Seu verbete no Larousse Gastronomique foi a chave da captura do adorável canibal Hannibal Lecter, no filme “Dragão vermelho”.
Tutano
Talvez a mais intensa das iguarias que um animal possa oferecer, após o foie gras, é a carne interna dos ossos superiores das pernas e coluna do boi. Delicada, mas muito saborosa, é uma peça extraída com cuidado usada em molhos, embora sua consagração se dê com o milanês ossobucco e seus similares – os restaurantes finos têm um apetrecho próprio para a operação na mesa. Muito apreciada pelos portugueses, o tutano é um dos ingredientes citados no Livro de Cozinha da Infanta d. Maria, do seculo 15, como recheio de pastéis, ou seja de empadas e empadões.
Ubre
Mais uma das achuras de argentinos e uruguaios, são as tetas de vaca, que são fatiadas para integrar uma ‘parrillada’ ou serem grelhadas na brasa.
Esse post está diretamente relacionado ao anterior por quatro razões:
1) o design é fantástico;
2) a praticidade é nenhuma;
3) a revolução continua no Paleolítico (desta vez, o Inferior)
4) como Daneluzzo, o pessoal anda louco pra inventar a faca de cozinha.
Enfim, é um barato ter – mas nunca usar – o jogo Modern Stone + Flint Tools, dos designers Dov Ganchrow e Ami Drach, morto no ano passado.
O material de divulgação da dupla israelense fala em revisitação dos estágios primitivos do ser humano, com direito a silex e suas impressões digitais (no sentido tecnológico) da pedra lascada. Entendo a intenção, bem visionária, aliás: basta entrar em uma cozinha em pleno agito de uma função, mesmo a do mais refinado gourmet, para entender que o homem nunca saiu do estágio primitivo.
O design desenvolve-se de tal forma na cozinha que, no despertar do século 21, chegamos ao Paleolítico Superior. Nesse caso, os reconhecimentos vão para o italiano Michele Daneluzzo, famoso pelas pequenas revoluções que promove nos mobiliários urbanos e domésticos. A faca é linda, reconheço, mas quem fizer o que as fotos publicitárias exibem pode deixar a sua cozinha à mercê da Saúde Pública, que já vai chegar atirando. Um belo cabo no lado mais arredondado, quem sabe?, e Daneluzzo pode ir mais além na sua revolução, inventando a faca de cozinha, que, como essa editoria antevê, expert que é em prever o passado, será o padrão dos cozinheiros em todo o mundo.
Saída do cardiologista com a boa notícia debaixo do braço: depois de tudo o que comi e bebi ao longo desses anos, dieta liberada. Meus crimes compensaram, meus pecados foram relevados, meus excessos não foram computados, meu arquivo foi limpo, meu foie não ficou gras. Mas um pequeno castigo estava à espreita – ninguém mandou comemorar no ato, no primeiro lugar que encontrasse. Casa do Alemão, infância falou alto, mandei vir o chope escuro, que chegou com a espuma balouçante, insinuante, sensual, densa, mas com o paladar apenas superior ao que sai da torneira da minha cozinha.
Relevei. A boca cheia era mesmo para o sanduíche de língua defumada que estava no cardápio. Lembrei do similar do Katz Deli e salivei com aquela iguaria quase incomível, inatingível de tanta carne macia, um breve pela desarticulação de qualquer maxilar escondido entre duas fatias indefesas de pão crocante. Quando chegou o meu, travei de suar frio. É isso?, perguntei, perplexo, diante do risquinho vermelho, o pretenso recheio que vinha no meio de uma massa mórbida, que o local insiste ser um pão de leite, diligentemente cortado em dois.
– O senhor pediu de língua? Então é isso mesmo, respondeu o atendente, antes de sumir lá pra dentro com a sua elegância moldada nas docas.
Certa vez, o jornalista Paulo Roberto Matta disse que eu era um estóico, que eu me divertia em ir até o fim de situações incorrigíveis só pra ver no que ia dar. Ele deveria estar junto e testemunhar seu diagnóstico, pois, por pura revolta, pedi uma segunda rodada.
– Repeteco, mas dessa vez com recheio, deixei claro, com voz entre o sério descontraído e a busca inútil pela migalha de generosidade.
– O senhor quer que “esquenta?”, tentou retribuir o rapaz. Cúmplice com a providência e omisso com a gramática, aceitei. Veio idêntico, um pouco mais esmagado e lustrado pela chapa engordurada. O risquinho vermelha continuava delgado. Nem me lembro de quanto paguei, mas foi caro – qualquer preço seria. Se tinha a notícia boa como único tempero para salvar o paladar do momento, saí com a lição de que achar que encontraria um sanduíche de língua farto, generoso, estarrecedor como o de um Katz Deli seria inútil.
E também aprendi que mesmo aquele, o mais triste dos sanduíches, satisfaz a exigência displicente do lanche do passante, do comensal do ticket-restaurante, da falta de paladar de um país que estabelece uma regra tácita: por ser barato, será medíocre – e, por ser medíocre, será barato. Naquele momento, o Alemão ficou na velha estrada da minha infância – e entrou na autobahn esburacada da falta de exigência. Tudo se resumia àquele pedaço de indolência que ficou na minha frente – e, pior, ficará ali, na frente de todos.
O que me atrai nos modismos das mesas lisboetas é que, qualquer que sejam, serão, acima de tudo, portugueses. Mesmo no caso das tendências que vêm de fora, como o hambúrguer. Hambúrguer em Lisboa?, pergunta o incauto, que tem Portugal como uma grande esquina do bacalhau com pastel de Belém.
Yes, hambúrguer em Lisboa, mas de carne barrosã, do norte, rica, saborosa, sempre a de novilho. Ou de Carnalentejana, sensação recente, sucesso merecido. Se for cheeseburguer, queijos como os da Ilha (a de São Jorge, Açores, bem entendido), azeitão, Serra. E, em ambos os casos, pães como os de Mafra ou o badaladérrimo bolo de caco, também da Ilha, mas a da Madeira, bem entendido.
O que está lá em cima neste post é o do Cais da Pedra, de Henrique Sá Pessoa, com o queijo da Ilha derretendo em porções quase tão generosas quanto à da carne. O do meio é do Guilty, do inquieto Olivier da Costa. Nele, o bolo de caco dá outra dimensão ao hambúrguer de wagyu. Mais caco, dessa vez o de alfarroba, que dá cor e intensidade de pão preto ao sanduíche de salmão do Cais da Pedra, o que vem logo abaixo. Na guarnição desse último, mais uma inovação lusitana com marca de tradição: a batata doce (e frita, claro) de Aljezur, do ainda pouco explorado litoral do Alentejo.
Como toda idéia simples, genial. Em vez do licor de cassis, uma dose de ginja. Com direito a uma das frutinhas – diz-se “com elas”. E aí está a contribuição alentejana para o até então cafonérrimo kir royal. Foto ruim em um lugar ótimo, o The Decadente, bar da moda em Lisboa. Comidinhas, bebidinhas, badalação, gente linda – e inteligente, a julgar pelas sugestões do barman. Por essas e por outras sugestões, já está no Top 20 do Guia de Restaurantes da TimeOUt Lisboa 2013.
The Decadente
Rua de São Pedro de Alcântara 81
Lisboa
+351 21 346 1381
Não tenho mais paciência com a associação do ramo da oliveira com a pomba da paz ou com a falácia do dilúvio, hoje, já sabido, um tsunami que fundou o Mar Negro e afundou parte do Oriente Bíblico em lendas sobre o cataclisma. Mas abro aqui a minha exceção ao Oliveira Ramos, o azeite do über enólogo João Portugal Ramos, presente que minha nutricionista particular Fernanda Machado Soares trouxe na mala.
Feito o trocadilho, o lado mala em si: é produto leve, persistente, jeitão de azeitona recém-prensada e aquela cor verde-gentil (inventei agora) que o consumidor condicionado a óleo composto jamais reconheceria como azeite. No corte, as azeitonas das raças galega, cobrançosa e picual, em seleção dos olivais do produtor, em Estremoz, Alentejo. Todas finas, insinuantes e untuosas como um beijo bem dado.
E a garrafa é linda, serigrafada com os dizeres do próprio João a respeito da atividade, que, pode-se pensar, não é um novo ramo nem um novo trocadilho, mas o “regresso às origens”, como fala ele a respeito de sua vocação de infância, ele que nasceu entre vinhas e olivais, de ramos maiúsculos e sem lendário minúsculo.
O mercado dos produtos finos para a cozinha continua aquecido, nos Estados Unidos. Literalmente, se lembrarmos de lançamentos recentes como a linha de molhos de pimentas da Henry Family´s Farm. O lado quente do paladar está nas pimentas usadas, entre elas a sugestiva fatali, da África, e a naga jolokia, a segunda mais violenta do mundo, indiana na origem, mas cultivada na Virgínia. No lado do nome, está o crítico de gastronomia David Rosengarten, que adicionou a linha à sua coleção Gastronomic Collections, uma das mais badaladas das delis de Nova York.
Os três espécimes escolhidos pelo crítico já foram devidamente acrescentadas ao nosso dicionário de pimentas, que você encontra aqui, no Dicionário das Pimentas.
EspetoHoje, os espetinhos japoneses, os yakitoris (焼鳥) estão em todos os cantos. Até naqueles réchauds baforentos de churrascarias e restaurantes a quilo (uma contradição em termos). Mas nos primeiros tempos do Azumi, ainda eram uma raridade com cara arqueológica e que despertavam reações sociológicas.Uma delas era essa aí, da foto, a de tentáculos de lulas, que a imprensa tratava como um misto de ícone da descoberta do fogo com o mocape de uma cenografia de Kurosawa. E, as moças, encaravam com o estarrecimento de quem abriu o crânio de uma galinha pintadinha.
E com uma certa razão, até, já que o autor Richard Hosking (A Dictionary of Japanese Food) cita os pardais (com cabeça e tudo) como uma das especialidades do gênero – hoje em desuso, mas ainda importante para explicar a origem da palavra: 焼鳥 significa, literalmente, espeto assado de pássaros. Atualmente, as galinhas são mais comuns, mas, convenhamos, com todo esses aditivos, anabolizantes, esteróides e amaciantes da carne, o frango que se usa aqui, no cotidiano, tornou-se tão ou mais distante de um passarinho do que a lula desse nosso espeto.
Os melhores momentos do traço de Hergé, criador do personagem Tintim, são os flagrantes de sustos ou suspenses das histórias. Das páginas para pratos, tigelas e, principalmente, as xícaras, as novas coleções da marca vão se tornando uma febre para os colecionadores, que se preparam para a próxima leva, no rastro da continuação do filme, produzido por Steven Spielberg. Os pedidos podem ser feitos diretamente no site do herói, em www.tintin.be
Quemvoa pela classe executiva da British Airways já conhece. Cintilantes na aparência e surpreendentes no paladar, os chocolates do inglês Harry Louis aterrissaram no Brasil com mais de 50 sabores inesperados. Aos cremes finos que importou da Bélgica e da Itália, somam-se aromas como os de bebidas finas (champagne, amareto, amora) e experiências que vão dos chicletes à coca-cola. Na cobertura de cada bombom, um glitter comestível trazido de Nova Iorque e, em parte, inspirados pelo glamour do parceiro do chocolatier inglês, o estilista Marc Jacobs.
Enquanto as autoridades dos vinhos sul-africanos concentram seus esforços em São Paulo, o Rio de Janeiro faz as suas próprias descobertas, especialmente em Ipanema. Uma delas é a versão 2008 da Meerlust, com seu Chardonnay 2008, da região de Stellenbosch. Denso na cor e no paladar, é um vinho gastronômico, que pode acompanhar de peixes mais gordurosos às carnes grelhadas, como aquelas sugeridas na carta de vinhos do Esplanada Grill.
Outra descoberta de Ipanema é a vencedora de uma degustação às cegas promovida pela importadora Grand Cru, em sua loja na Rua Vinícius de Moraes: o Remhoogte. Na base, uma das uvas que encontraram seu terroir na área em torno da Cidade do Cabo, o chenin blanc. Fresco, mineral, cítrico e muito elegante, é um vinho próprio para degustação, embora faça um belo par com uma pratada de ostras ou, ainda melhor, de mexilhões.
PERFIL GASTRONÔMICO
Ana Cristina Reis
Editora do Caderno ELA
Estilo, bom gosto, criatividade, cultura e um bem humorado senso crítico levaram a jornalista Ana Cristina Reis a duas mesas. A primeira, aquela da qual comanda um dos suplementos de moda mais importantes desse hemisfério: o Caderno Ela, do jornal O Globo. A segunda, a dos mais importantes chefs da atualidade. É das poucas pessoas da estirpe brasileira dos gourmets que já teve em sua companhia nomes como Ducasse, Adrià ou Robuchon, não para um simples brinde ou para a apresentação de um cardápio, mas para ter a sua mão beijada pela nobreza com que contempla o que se serve, aprecia o que se prepara, admira o que se descobre. Tudo isso aconteceu, antes de dar a partida para o primeiro caderno de gastronomia do Rio de Janeiro, o ELA Gourmet, que vai completar dois anos. Imaginem depois. Mas passamos à frente de toda essa comissão de frente da culinária e conseguimos da editora um pouco de suas impressões, que, mesmo se saem de forma doce, têm o seu lado salgado – ou, melhor, apimentado.
Você cozinha? Quais as suas especialidades, quando assume o fogão?
Sou cozinheira de fim de semana: sei fazer bem peixes, saladas e risotos. Amo carne, mas acho que ela pede uma grelha.
Em que momento da vida despertou o gosto pela boa mesa?
Minha família dirigia duas horas só para comer um coelho. Aos 5 anos, fui flagrada num banquinho, à noite, fazendo um mingau. Contam que, além de manteiga e canela, acrescentei pimenta do reino. Perguntada por quê, respondi “para dar um toque”. Aos 11 anos, pedi para ser matriculada em um curso de cozinha, que naquela época não estava na moda como hoje. Acabei em aulas para noivas que desejavam se casar sabendo fazer ao menos arroz e carne-assada.
Os pratos mais fortes, você encarava na infância?
Cresci numa fazenda, comendo de tudo. Quando vinha ao Rio, meu pai me levava para provar escargot e ris de veau no Bec Fin. Quando viajava com minha avó paterna, ela dizia: “Em vez de compras na Galeries Lafayette, vamos ao teatro e a bons restaurantes”. Foi assim que, aos 15, experimentei a nouvelle cuisine do Pré Catelan, em Paris, e percebes, em Lisboa.
O que você considera alta e baixa gastronomia?
Gastronomia é tudo que é bom: do pastel da esquina ao ouriço de um restaurante fino. Essa história de alta e baixa parece coisa de publicitário.
O que você não pede de jeito nenhum?
Tenho horror a atum em lata. Me faz lembrar as pastinhas de atum com maionese de algumas festas do tempo da faculdade.
Qual o seu lado doce, na mesa?
Chocolate, sempre, e doces feitos com frutas e especiarias. Minhas sobremesas preferidas no Rio já foram o sorvete de lavanda da Silvana Bianchi e o kouign-amann (bolo de manteiga, em bretão) do Olivier Cozan.
Em Paris e Londres, Buenos Aires e Nova York, quais os restaurantes preferidos?
Em Paris, poxa, esta é difícil. Mas, se só podem ser dois, aqui vão: L´Arpège e Pierre Gagnaire. Em Londres, o Gordon Ramsay, na Royal Hospital Road; e o Dinner by Heston Blumenthal, no Hotel Mandarin. Buenos Aires: Estou desatualizada, mas são sempre ótimos o café da manhã no Hotel Alvear e o ojo de bife no La Cabrera. Nova York: Jean-Georges e Daniel.
Nessas cidades, quais casas você ainda não foi, mas pretende ir?
Em Nova York, o Per Se. E o restaurante tailandês ou chinês que estiver bem cotado, tanto lá quanto em Londres. Quero conhecer os novos restaurantes de cozinha peruana que surgiram em Buenos Aires e, em Paris, sonho em fazer um roteiro atrás do melhor suflê da cidade. E quero ir demais a San Sebastian.
Dos grandes restaurantes internacionais, qual você se arrependeu de ir?
Sinceramente, sempre tem um dado curioso. Nos restaurantes famosos internacionais, sempre algum prato se salva.
Do mar, o que prefere e o que evita?
Prefiro scampi e polvo. Às vezes, evito ostras (de ouvir meus pais falando para ter cuidado, porque podia matar).
Algum boteco que freqüente, no Rio e em São Paulo.
No Rio, Pavão Azul e Academia da Cachaça.
E o sanduíche definitivo?
A versão do chef Felipe Bronze para o sanduíche de pernil com abacaxi do Cervantes. Das melhores receitas que já comi.
O que experimentou recentemente, pela primeira vez, e adorou?
Bochecha de porco, há uns dois anos.
Petisco assistindo à televisão…
Pistache ou macadâmia. Devoro uma embalagem.
O que come sozinha, em casa, quando ninguém ta olhando…?
Cabelo de anjo frio com mel e vinagre balsâmico (do tipo mais encorpado).
O que mais irrita em coquetéis?
Quando eles são muito doces.
Da recente onda de filmes sobre gastronomia, indica algum?
Recentes, não. O último que amei foi “A festa de Babette”.
Ainda se lembra do seu primeiro vinho?
Foi um Concha y Toro ou um Periquita. Era o que tínhamos na época. Mas fiquei longe dos brancos de rótulo azul.
E do mais recente?
Foi um Malbec Catena Zapata.
Quais os rótulos de que você nunca esqueceu, pra bem ou pra mal?
Para o mal, Liebfraumilch, que experimentei na década de 80. Para o bem, todos os vinhos que tomo quando estou com meu amigo Luiz Carlos Ritter. Mas existe dois momentos em especial: a primeira vez que provei um Cheval Blanc e um Sauternes.
Curte drinques em geral? Quais?
Margarita, martíni, gim tônica e caipivodcas.
A bebida que evita (a ressaca inesquecível)
Ressaca de Cointreau, na adolescência. Adoro os Portos, mas não sou chegada a licores.
O que o teu médico acha de tudo isso?
Meu médico virou meu Companheiro da Boa Mesa. Ele sabe que o bom-senso é tudo.
Dia desses, resolvi desmembrar uma antiga matéria sobre cervejas artesanais em posts isolados. Germanicamente, seguindo minha reinheitsgebot editorial, comecei pela primeira: a abadia, que está logo abaixo. Mas com as mudanças que promovo cada vez que abro essa página, achei mais divertido fazer em grupo – e evoluí-lo, com um pouco do meu lúpulo amargo. Se os verbetes crescerem muito, reedito e transformo em post – e quem vir alguma besteira, pode apontar, que eu apronto. Esse site não tem critério mesmo… se tiver, acuse também, que eu corrijo isso.
O ABC DAS CERVEJAS
Um índice de estilos e sabores das para quem quer degustar a moda do momento: as cervejas artesanais
No filme Perfume de mulher, o feroz Coronel Slade, vivido por Al Pacino, ordena ao garçons do Oak Room, para seu pupilo: “Schlitz! No Schlitz? Blatz! No Blatz? Improvise…”. É uma das senhas para o que, aos poucos, acontece no Estados Unidos: a procura por boas cervejas, longe daquelas que as grandes marcas estabeleceram como padrão para a litragem de churrascos e jogos de futebol, mas sem personalidade exigida pela evolução do paladar no mundo. Por muito tempo, os americanos ainda terão a fama de beber má cerveja.
Imitador contumaz dos vizinhos do norte, os brasileiros também optam pela cerveja baratinha, achando que estão se dando bem. Mas o lento processo de transformação dos americanos é a senha para um significado claro: o paupérrimo trinômio “samba, suor e cerveja” está definitivamente desfeito para o mundo gourmet. Isso, graças à proliferação de rótulos de pequenas cervejarias artesanais, causada pela evolução do paladar da bebida – a cerveja deixou de ser apenas um refresco de granel para ganhar novo status nas mesas.
Lagers e pilsens sempre regeram nossos copos de cerveja e nossas canecas de chope. Mas novas variedades, com cores, corpos, perfumes e sabores bem distintos começaram a surgir e trazer para o Brasil três fenômenos: o da multiplicação dos bares dedicados às cervejas especiais, a chegada das primeiras cartas de cervejas nos restaurantes e – melhor de todas as notícias – a explosão de uma notável rede de cervejas artesanais brasileiras, ditas micro cervejarias.
No exterior, a experiência das cervejas artesanais conta com uma rede mundial de adeptos, que transformaram em febre o gosto diferenciado das cervejas, sejam as tradicionais como as trapistas da Bélgica ou as modernas, como as escocesas BrewDog e a americana Dogfish Head, passando pelos rótulos especiais de época, como as de Natal ou as perfumadas com frutas, chocolates e até ostras ou abóboras. No glossário abaixo está um pouco desse universo, em que brilham marcas brasileiras como a Bamberg, a Wäls, a St. Gallen e outras curiosas, como a Coruja e a Green Cow.
TENTANDO ENTENDER
Abadia
Nos rótulos, abbey ou abdij. Diz-se das cervejas belgas ou, em alguns poucos casos, francesas ou holandesas, produzidas pelos monges, trapistas ou não, no rastro da tradição de antigos alvarás e forais que permitiam que as paróquias tivessem alguma forma de sustento. O resultado está aí, cervejas de alta qualidade, intensas, classudas, algumas orgulhosas de seu milênio de pesquisas em grãos, maltes, águas, fermentos e brassagens (galicismo que só Houaiss aceita), além de algum eventual aditivo como frutas e ervas. A produção limitada envolve a dupla ou tripla fermentação, que garante acentuação de sabor, corpo, nível alcoólico e, muitas vezes cor, que pode tender ao âmbar ou ir ao vermelho ou marrom claro. Mais em
Ale
Fórmula original de produção de cerveja que os ingleses tomaram para si, embora os similares nórdicos “öl”, de pronúncia idêntica, possam ser ainda mais antigos, como sugere o dicionário etimológico de Douglas Harper. Tratam-se, genericamente, de cervejas de fermentação dita “alta”, realizada no alto do tonel e, coincidentemente, liberando temperaturas também altas, em contraste com as lagers, de fermentação baixa. Pela tradição, tendem a ser mais frescas e ligeiramente mais amargas.
Bock
Uma das variedades que as grandes marcas brasileiras usaram para tentar um segmento mais exigente de consumidores, embora jamais chegassem próximo do produto original de Eisenbock, na Alemanha: cervejas escuras, fortes, complexas, maltadas e de boca cheia, quase adocicada.
Bitter
Denominação que os ingleses atribuem a seus ‘ales’ produzidos com forte carga de lúpulo, que confere o sabor excepcionalmente amargo, sugerido pela denominação.
Chope
Palavra de origem alsaciana – schope, em sua forma arcaica -, que corresponde ao copo de porcelana do mesmo nome, com alça e tampa, que, em geral, sustenta meio litro de cerveja ou de vinho. Em países aquém de Tordesilhas, convencionou-se a denominação “chopp”, talvez por influência desastrada do tirolês schoppen, que pode significar tanto a medida alsaciana quanto a garrafa da mesma capacidade – mas, de forma alguma, o método de tiragem do barril, tal como imortalizado nos pântanos além de Finis Tarrae.
Lager
Do germânico lager, lagar, armazém. Tipo de cerveja clara e cristalina, que descansa até ter todos os sedimentos depositados. É o contraponto do estilo “ale”, por ser produzido em fermentação dita baixa, tanto em temperatura quando na parte de baixo do tonel. De origem alemã, contém pouco lúpulo e tornou-se o tipo mais comum que existe em todo o mundo, embora somente algumas delas, fora dos domínios de Brandemburgo, mereçam a marca original em seu rótulo.
Lúpulo
A alma da cerveja, está para a bebida como as castas de uvas estão para o vinho. Mais de 30 variedades diferentes conferem diferentes níveis de amargor ou de perfumes e sabores que vão dos florais aos cítricos. É tido como um elemento de combate às bactérias, o que garante boa duração, tal como explorado no marketing da India Pale Ale.
Malte
Matriz e base das cervejas, equivale à sua musculatura – das mais finas como as ales às mais encorpadas como as imperial stouts. É a semente germinada da cevada, que será torrada e fermentada para a liberação de álcool, açúcar e gás carbônico. Quanto mais torrado esse malte, mais escura é a cerveja.
Pilsen
Variedade relativamente nova de cerveja – “apenas” 150 anos desde que foi produzida pela primeira vez na região de Plsn, na Bohêmia, atual República Tcheca. Inspirou de tal forma a cervejaria alemã que, atualmente, é considerada – e rotulada – como sinônimo de ceveja ‘lager’.
Porter
A denominação “porter” viria do seu público consumidor, na Inglaterra Medieval: carregadores de diligências e estivadores dos portos. Uma das cervejas da moda, é reconhecida mais pelos aromas de caramelos ou chocolates do que pela cor, que pode variar do dourado ao escuro.
Rauchbier
No nariz, lembram um prato de carnes amorcilhadas, o que faz dessa cerveja alemã, preparadas com malte de cevada defumada – a palavra rauch significa fumaça. Recomenda-se o consumo com salsichinhas e carninhas, embora seu espetáculo se dê não com um kassler fino, mas com uma feijoada robusta.
Stout
Palavra que, desde o século 13, vende dois conceitos bem presentes e um dos estilos de cerveja preferidos dos ingleses: força e orgulho. Tendem à cor escura do malte torrado e corpos que variam conforme região, estilo e até marca. Dezenas de tipos se multiplicam, inclusive uma suspeita “oyster stout”, que, sim, já foi preparado com ingredientes como as ostras e, hoje, guarda um leve sal, próprio para se degustar com o crustácdeo. Seu principal sinônimo é irlandês, a Guinness, a mítica cerveja preta irlandesa, de sabor forte como o de um café e corpo médio, excelente para acompanhar carnes.
Weissbier
Ou, simplesmente, trigo. Em alemão, que manda nas originais, significa, literalmente, “cerveja branca”. No resto do mundo, é a cerveja da moda. De branca, tem pouco. De moda, muito. A cor é referência à matriz do malte dessa cerveja clara e refrescante, a mais indicada para ser degustada em copos longos e finos, do tipo tulipa. Tende ao paladar ligeiramente voltado à canela, mas, gastronomias à parte, tem uma única função: limpar a boca. Tende a ser leve, mas, fica o aviso, não é uma cerveja para fracos. Ou fracas.