Desde os fins do século passado, me recuso a dizer qual, o wagyu tornou-se uma febre entre os devoradores de carne. Chegou sob a grife do bife de Kobe e com a mística de custar 200 dólares o escalope. Desbancou o luxo maior que a época tinha na área: os angus certified britânicos. As primeiras imagens que circularam, em uma época em que a internet ainda era uma desconfiança (hoje, é uma suspeita) e as redes sociais atuais ainda estavam em gestação, eram diferentes das carnes que estávamos acostumados a ver, sentir, manusear.
Na aparência, lembravam umas esponjas rosas, com ranhuras brancas, que eram dispostas com a delicadeza de um sashimi. Dariam um ótimo papel de parede. Aos poucos, foi chegando a nós em diferentes formatos e densidades de sua gordura, que, cultuadíssima, é entremeada na carne como uma rede em 3D, não com a capa que vemos em picanhas e contrafilés. Eram cortes de cruzamentos diferentes das matrizes japonesas, primeiro com raças australianas e neozelandesas, depois com americanas e, para dar o ar doméstico, as uruguaias, que chegavam com um paladar rico, às vezes intenso demais, quase enjoativo, como no caso das fraldinhas.
Era um paladar forte, sim, mas que o gosto brasileiro não considerou tão superior a ponto de encarar a diferença de preço em relação aos cortes mais corriqueiros. Talvez faltasse exatamente isso: uma adequação ao paladar nacional, produzido aqui. E algo que se parecesse com o que já experimentara em Los Angeles, na forma de um hambúrguer, ou, anos depois, em São Paulo, como convém na grelha leve – o gyutataki, como dizem. Esplêndidos, todos. Diferentes, todos.
Mas se o mundo dá as suas voltas, com lugar comum e tudo, o mundo das carnes não será exceção. E ele parou na minha frente, na forma de um menu original que o Bazzar dedica à carne wagyu. Dessa vez, a carne não era mais pesada e cansativa, o que mostra que, em algum lugar, em algum momento, houve um erro de percurso.
Era leve, perfumada e, principalmente, obediente às sugestões da casa e à conspiração de duas das pessoas mais importantes da gastronomia carioca atual: Cristiana Beltrão e o seu chef Claudio de Freitas. Foram eles que escolheram a carne, a partir de uma das diretrizes da casa: produtos nacionais. Tudo se encaixou.
São quatro as escolhas – o ideal é pedir as quatro: entrada e três pratos principais. No primeiro, a crua, experiência de impacto, a mais adequada para sentir a textura de algo realmente diferente – e a que mais se aproxima daquele que os próprios japoneses indicam para a degustação da carne original.
E veio na forma do steak tartare, com o paladar untuoso da carne batida na faca delicada, enriquecido com uma gema caipira. O lado crunchy veio no fio ao alto da montagem, uma longa tecelagem de batata frita. No molho, sob a carne, um batido de alcaparras. O segundo formato veio na forma de um dos cortes da moda: a bochecha. E como convém, cozida lentamente, até que as fibras se soltassem e se enriquecessem do molho de cerveja stout e extrato de guaraná. Purê de cará para o equilíbrio.
Não podia faltar o filé grelhado, tão amado por nós, platinos. Altius, mas, felizmente, nada fortius ou sitius. Pelo contrário: generosa e macia, como se dizia a pax romana. No acompanhamento do prato, uma cruzada pessoal do chef Claudio: uma alternativa para a ditadura do brie com geleia de damasco. Veio o arroz com o queijo, ok, mas com o toque de acidez que valorizou a carne: o molho de cupuaçu.
Por fim, outra experiência que volta à carne picada – e que se tornou a aplicação maior do wagyu em todo o mundo: a hambúrguer fino. Untuoso, cremoso e luxuoso, com sua guarnição de foie gras e cebolas carameladas. Opão, já conhecia do hambúrguer do Bazzar Café, excepcional, que me mata, em Ipanema ou no Leblon, as saudades de endereços míticos da Park Avenue.
Quatro formas diferentes de preparo. Em todas elas, podem-se encontrar tons comuns, mas um deles diz respeito aos vinhos: a estrutura que a forma especial da gordura proporciona. Os rótulos foram sugeridos sem compromisso direto com o cardápio especial – a turma era descontraída – mas a inteligência emocional falou alto. E vieram o (melhor) tannat do Uruguai, o Amat. E o (melhor, nas palavras de Robert Parker) syrah da área de Crozes-Hermitages, o bio Crozes Hermitage Les Varonniers 2008, tão delicado e responsável que o rótulo vem em braille.
Falava sério – e já falo há algum tempo: brinco quando eu digo que são, alegremente, honestamente, consistentemente, duas das pessoas mais importantes da gastronomia carioca atual?
Condimento preparado com pimentas e pimentões vermelhos, que são secos ao sol ou no forne e picados com as sementes. É usado no preparo da lingüiça, que também é, inexplicavelmente, batizada calabresa – e é conhecida pelos americanos como pepperoni, mas sem relação com a lingüiça de gosto discutível e de aplicação restrita às pizzas americanas. Pela sua aparência rústica e sua aplicação industrial, sua chegada à mesa foi tardia. Os flocos devem ser usados com parcimônia pelo aquecimento lento mas inexorável, que pode levar, dependendo do caso, ao despertar de certos tipos de alergia. Mas vem se tornando uma alegre altarnativa de condimentação das pizzas contemporâneas, como no caso da foto acima, tirada na pizzaria Braz.
Tudo sobre pimentas em Dicionário das Pimentas.
Novos aromas no Shopping Iguatemi, mais exatamente no Armani Caffè, em São Paulo. É que a simpática casa do grupo Fasano acaba de lançar uma nova fornada de pizzas na lenha, em onze opções que se juntam ao cardápio da casa, marcado por saladas, carpaccios e paninis. Entre os destaques, a pizza ripiena, com queijo provola defumado, abobrinha, tomate e grana padano. E a giardiniera, com legumes ao forno ou a regina (foto), com mussarela, tomate, creme de leite e presunto.
Armani Caffé
Shopping Iguatemi
Avenida Faria Lima 2.232, 3º piso.
Tel.: (11) 3814-8264
Há uma coleção de pratos, não sei quantos exatamente, dos quais não tem como eu me esquecer. Um deles é a entrada de cogumelos preparados ao ponto, com caldo rico e intenso, preparado pela chef Elba Ximenes. Por isso, é com prazer (olfativo) que soube que a sua casa na Fonte da Saudade, o Guy Bistrô, está completando 4 anos. Completou ontem, aliás, quando ela lançou um menu especial, que contou com a parceria de dois outros nomes que caíram na simpatia do carioca de bom paladar: os chefs Ana Ribeiro e o Renato Freire.
Ela, mineira; eles, idem. “Uma mineirice só!”, comenta Elba a respeito do encontro com os dois amigos de longa data. Das Geraes, chegam ingredientes e memórias que já estarão no couvert e nos pratos, em que a trinca põe em prática as suas experiências à la française. É a entrada “Dimái da conta”, um parmantier de arroz com pequi picante, farofa de torresmo e lombinho caramelado. É o “Oh! trem bão”, um frango caipira crocante recheado de ora-pro-nóbis, mousseline de milho verde e brochete de quiabo. E é o “Trenzinho Caipira”, quatro mini sobremesas a base de leite e suas doçuras.
Os preços são individuais para quem quer escolher outros pratos, mas o menu fechado sai mais em conta, por simpáticos R$130,00 por pessoa. O menu segue no ar até domingo, dia 29. Escolha o lado de cima, com vista da Lagoa e ouça as sugestões do sommelier sobre como domar os poderes da cozinha mineira com a boa adega que Elba mantém em sua casa – e manterá pelos próximos 4 anos.
Guy Bistrô
Rua Fonte da Saudade 187
Lagoa
Telefone: (21) 3624-8252
Aberto de terça a domingo para café da manhã, almoço e jantar.
Estes últimos três posts foram colocados nessa ordem de propósito. É uma forma de expor como as celebridades, os designers e o mundo fashion está definitivamente ligado ao universo das bebidas finas, da água ao champanhe. O motivo foi a divulgação, na última terça-feira, pelo boletim da Decanter, da mais nova coleção da Dom Perignon – a Vintage 2003 e a Rosé 2000. Quem assina é ninguém menos do que o esteta e über cult diretor de cinema David Lynch, o mesmo que nos chocou, nos anos 80, com o filme Blue Velvet.
As garrafas em si são uma bobagem, de resultado que beira o kitsch à mise en cène divulgada para o processo de criação: dias de isolamentos e câmaras escuras. Mas o produto final contou com o auxílio luxuoso do técnico em efeitos especiais Gary d’Amico, com quem Lynch trabalhou no filme Mulholland Dr. e que já assinou besteiras inúteis como Heroes e World Trade Center e outras adoráveis como a primeira versão de Tron e A Família Dinossauro.
Essa é a segunda incursão da maison no show business. No ano passado, o conceito da série especial da marca foi criada e fotografada por Karl Lagerfeld, por si só responsável pelo desenho de séries para Coca-Cola e a direção de filmes para os sorvetes Magnum. E a ação é também a etapa mais recente de um processo de ligação das bebidas com a cultura pop e o mundo fashion, que já contou também com campanhas que agregaram estrelas como a bond-girl Olga Kurylenko (Cointreau) e Scarlett Johansson (Moët et Chandon).
Nova série do design da Ballantine’s. Desta vez, a coleção Night do rótulo do scotch ganha as linhas aritméticas do francês François Brument, famoso pelo seus projetos baseados da digitalização de cálculos, que resultam em uma arte minimalista e, muitas vezes, ilusionista, no melhor estilo “trompe l’oeil”.
As série inclui cinco layouts para as garrafas de bar, com a criação de um novo rótulo a partir do “B” da marca e a exploração do conceito “Ballantine’s Finest”, com os grafismos luminescentes, aplicados em estéreo-litografia com resinas sensíveis à luz, que fazem com que o rótulo e a logomarca mudem sua forma conforme a iluminação do momento.
Há também duas artes, uma em preto, outra em branco, para as edições de colecionadores, além de uma série complementar, que inclui copos, frascos e geleiras. “A inspiração veio de duas visões que eu tenho da marca Ballantine’s: a rigidez e o minimalismo”, comentou Brument, a respeito do resultado.
Grandes marcas de bebida convidam estilistas para desenhar garrafas comemorativas, numa parceria em que as duas partes saem no lucro
Rafael Teixeira
(especial para a revista Magazine CasaShopping, 39)
Um dos uísques mais famosos do mundo, o Chivas Regal fugiu do branco para comemorar um réveillon. No final de 2010, a marca escocesa lançou uma garrafa especial para o seu blend de 18 anos, com roupagem fashion, desenhada pela estilista inglesa Vivienne Westwood. O invólucro é praticamente uma roupa: nas cores azul, vermelha e cinza, tem botões metálicos e uma espécie de medalha. A iniciativa é mais uma de diversas que vem ocorrendo nos últimos anos, na mesma linha: garrafas de bebida que são redesenhadas por grandes nomes do mundo fashion.
O próprio Chivas 18 já foi vestido outras duas vezes: pelo britânico Alexander McQueen e pelo francês Christian Lacroix. “Como se trata de um consumo muito ligado a comportamento, as marcas de bebidas geralmente trabalham muito bem o seu branding”, diz Ana Couto, CEO do escritório Ana Couto Branding & Design. E se é verdade que uma roupa revela muito sobre o homem que a veste, dá para dizer o mesmo de… garrafas? “Apresentação é fundamental no primeiro contato. Ela pode dizer muito, mas também pode causar decepção, já que a expectativa aumenta”, diz o sommelier Dionísio Chaves, do restaurante Duo, no Rio de Janeiro.
A invasão dos estilistas à seara do design de objetos não é exatamente nova. Hoje, difícil é encontrar algo que já não tenha sido transformado por eles, de frascos de perfume a carros, passando por itens de decoração, aparelhos eletrônicos e mobiliário. Mas as garrafas parecem estar ocupando um lugar de destaque nesse rol. “Se estilistas e marcas se conectarem respeitando suas personalidades, pode ser uma parceria de sucesso para ambos”, diz Ana Couto.
Exemplos não faltam. No ano passado, além do Chivas, a marca francesa de água mineral Evian convidou o estilista japonês Issey Miyake para uma parceria. O resultado foram garrafas em estilo sutil, leve e elegante. A ilustração, pintada no próprio vidro, mostra uma flor em que as pétalas, o miolo e até a folhinha no caule são garrafas estilizadas. Nesse ano, o desenho é assinado pela grife Courrèges.
O vídeo de apresentação da parceria define bem o conceito: produzido em computação gráfica, mostra camisas que vão se transformando em garrafas, como se as vestissem. Como de hábito, trata-se de uma edição limitada, difícil de encontrar: só está à venda nas lojas de Miyake no Japão, França, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos.
Antes de Miyake, a Evian já havia convidado Lacroix – que fez desenhos detalhadíssimos, lembrando renda –, seu conterrâneo Jean Paul Gaultier – que fez cinco versões inteiramente transparentes da garrafa, em cristal Baccarat – e, mais recentemente, o britânico Paul Smith – que desenhou fitas coloridas (como as de ginastas) no gargalo e cinco tampinhas diferentes.
Tentação para colecionadores, assim como a edição limitada das garrafas comemorativas da vinícola californiana Turning Leaf desenhadas pela dupla Bruno Basso e Christopher Brooke. “Há uma complexidade na criação do vinho, de encontrar a mistura exata e o equilíbrio de sabores, e isso é o que fazemos com nossas estampas”, disse Brooke em uma entrevista. As garrafas abusaram de cores, em tom quase psicodélico, bem diferente das tradicionais. “O primeiro critério para o sucesso de uma embalagem comemorativa. Não deve haver dúvida de que a embalagem mudou”, diz Ana Couto.
Da Califórnia para a região de Champanhe, na França, a cave Piper-Heidsieck também já se valeu de parcerias fashion. Anos atrás, Jean Paul Gaultier fez uma que não poderia ser mais apropriada para um estilista, literalmente vestindo a garrafa com um espartilho vermelho. Em 2007, a dupla alemã Viktor & Rolf desenhou uma como se estivesse de cabeça para baixo, com a base mais fina do que o gargalo. “Como poderíamos fazer algo novo de algo que é eterno? Só tínhamos uma resposta: inverter as proporções”, explicaram eles, na época do lançamento. Já em 2009, o estilo do champanhe foi para o calçado com o desenho criado pelo badaladíssimo Christian Louboutin.
Entre as vodcas, o estilista italiano Ennio Capasa, da C’N’C Costume National, já desenhou uma garrafa para a Absolut, negra, com desenhos de felinos carregando guitarras. Outro design recente, que envolve a moda, vem da designer Natalia Brilli, que concebeu o manto em couro e tachas para a Absolut Rock Edition . Outro italiano, Roberto Cavalli, não só desenhou uma garrafa como batizou a Roberto Cavalli Vodka. Simbiose fashion-etílica é isso aí.
Esse seria um post para uma seção que eu iria inaugurar, mas deixei pra depois. Seria o “Foto roubada do Instagram do Dia”, uma variação do “Imagem do Dia”. Mas aí eu vi o registro do Alexandre Bronzatto, o nosso Bronza, sujeito delicado e picante, complexo e estruturado, crítico imparcial e advogado da boa mesa. Foi uma foto feita alguns segundos diante da imolação que celebrava o seu aniversário. E resolvi evoluir a coisa. Valeu um “Palavra do Dia”.
Tinha comentado com ele que esse prato está no meu top 3 coronariano – o da sensação, não o do colesterol, esse ente lendário. Mas não cheguei a dizer que me deprime ouvir que é uma feijoada francesa. Não é. Um dia, quem sabe, a nossa feijoada, maravilhosa, sim, mas estarrecedora e excessivamente nutritiva, como dizia Cascudo, ainda chegará ao refinamento de um autêntico cassoulet. Só não cabem ao caso patriotadas de terceiro mundo.
É outro feijão – não existe aqui -, outras carnes (carnes e gansos), outras gorduras (carnes e gansos II), a personalidade de outras charcutarias, as doçuras de outros legumes, o travo de outras ervas, a elegância de outros fornos, a profundidade de outras tradições. Em tempos de olimpíadas, vale uma medalha de ouro. Ou, melhor ainda, uma medalha de Bronza.
Isso posto, compartilho aqui os rabiscos e alfarrábios que tenho esboçados para o verbete da enciclopédia:
A expressão cassoulet é uma prosódia do dialeto occitano “caçolo” e “caçolèt”, terrine, a mesma etimologia do espanhol cazuela. Um dos mais tradicionais pratos franceses, “dieu de la cuisine occitane”, segundo Prosper Montagné, transformou-se em campo de batalha pela verdadeira origem do prato e o formato da receita original. A própria palavra é bonificada apenas em 1897 pelos dicionários franceses, contrariando a origem medieval que as lendas nos impõem.
As receitas, que mudam de cidade para cidade, principalmente Toulouse, Carcassonne e Castelnaudary, que reclamam para si a autenticidade da receita, tornaram-se objeto de legislação específica por decreto presidencial dos anos 60 quando, de tão popular, acabou se tornando uma das refeições em conserva mais vendidas da França.
A poesia fica com a seqüência do dito de Montagné, que assume também tons de ranking: “Si le cassoulet est le dieu de la cuisine occitane: Dieu Le Père, qui est le cassoulet de Castelnaudary, Dieu Le Fils, celui de Carcassonne, et Le Saint-Esprit, celui de Toulouse“. Denuncio aqui a parcialidade: Montagné passou a infância em Castelnaudary.
Mas se preparo original não prevê leis, prevê regras rígidas. Um deles é o cozimento longo do feijão branco francês, diferente do nosso, menor, que dá pouco caldo. Os tipos lingot e coco são as mais comuns, mas uma enquete feita pelo jornal Nouvel Observateur, em 2008, trouxe à discussão as variedades tarbais e aquelas plantadas em Pamiers e Cazères, além das ancestrais monjettes.
Outros ingredientes surpreendem os hábitos do gentio de Vera Cruz: o tomate, as batatas e cenouras em discreta brunoise, condimentos como o bouquet garni e, em alguns casos, o cravo e o cominho. A forma de preparo também é diferente, já que o cozimento é feito com caldos de unto e de carnes como a de cordeiro ou de codorna.
A untuosidade final, por exemplo, é obtida com sucessivas gratinadas, regas de caldos e misturas das crostas que se formam, dependendo da versão, com o auxílio da farinha de rosca de pão campagnard. Quantas são? Seis a sete, dizem os compêndios do Segundo Império, mas o bom senso não confirma.
O próprio Anatole France, como lembra André Castelot, em seu monumental L’histoire à table, brincava com o apuro e o tempo de preparo do cassoulet que costumava degustar em Paris. Segundo ele, estaria há duas décadas, na mesma panela, sob o mesmo fogo: “Le cassoulet de Clémence cuit depuis vingt ans, elle ajoute dans le poêlon tantôt de l’ oie, , tantôt du lard, tantôt le saucisson ou des haricots, mais c’ est le même cassoulet”.
O mais clássico e apreciado de todos os cassoulets é o que vem de Castelnaudary, tida também como o berço lendário da receita, em inícios do século 15: longamente sitiados pelos ingleses durante a Guerra dos 100 Anos (na realidade, 116) e já no limite de suas resistências, os habitantes da cidade teriam juntado em suas maiores “cassoules” a derradeira provisão de carnes de porco e aves, salsichas, gorduras, legumes e favas para o preparo de um cozido que restaurasse as forças dos guerreiros para uma decisiva batalha.
O lanchão teria restaurado e multiplicado a força dos franceses, que teriam se lançado de surpresa contra o inimigo, que, em pânico, teria debandado. A lenda é improvável, is ingleses levaram tempo para debandar. E é pouco provável que tivessem favas em estoque – os feijões só chegariam à França 100 anos depois, através dos bascos, chegando à Gascogne e ao Loire (passando por Bordeaux, bien sûr) – e dos catalães, que a integraram no Pays de la Langue d’Oc, aí incluídos o Roussillon e a Provence.
Entre as carnes, outro diferencial e motivo básico do racha entre as cidades. O porco, que estamos acostumados a associar à feijoada, é a base do sal na receita de Castelnaudary, seja na forma de pernil, de barriga e de costelinha, que se juntam a embutidos e ao confit de ganso. Em Carcassonne, pernil de cordeiro e perdizes. E, finalmente, em Toulouse, o mais disseminado, barriga de porco, confit de ganso e o salsichão, orgulho da cidade.
Três receitas, um encanto. E na disputa saudável (gordura de ganso é saudável) entre as cidades, as fileiras cerradas entre os amantes do cassoulet, que – estou com o Bronza – troco por qualquer bolo de aniversário.
Marcel
Rua Consolação 3555
São Paulo
(11) 3064-3089
http://www.marcelrestaurante.com.br
Renata Braune e Wagner Resende estão assinando um menu que vai entrar para a história do restaurante Chef Rouge, nos Jardins, que está comemorando seu vigésimo aniversário. Os motivos: a partida de Renata, que vai para o cargo de consultoria do restaurante; e a chegada de Resende, vindo do Le Marais Bistrô, para assumir o lugar.
Entre os destaques da lista, chamam a atenção a caçarola de foie gras com cogumelos (o da foto) e o parmentier com rabada e mini agriões. E sugestões no estilo bistronomique, como a bouillabaisse de frutos do mar e o robalo com alcachofras ao vinho tinto , o mininhoque de sêmola ao roquefort e aratatouille de legumes com queijo de cabra chabichou. e a caçarola de foie gras.
Chef Rouge
R. Bela Cintra 2.238, Jardins
São Paulo
Tel.: (11) 3081-7539
Morumbi Shopping
Av. Roque Petroni Júnior 51, Terraço.
São Paulo
Tel. (11) 5181-9749
A mania de se associar banda de rock às bebidas (ou vice-versa, vide o vinho e a cerveja do Motörhead) ganhou mais um item de colecionador: o uísque que comemora os 50 anos da banda Rolling Stones. O estranho é que a homenagem não vem da Grã-Bretanha natal da banda. Vem do Japão, mais exatamente da Suntory (do post anterior), uma gigante produtora de um uísque surpreendente, que lança, em 30 de outubro, o exemplar da foto acima. A tiragem, claro, é limitadíssima: são 150 garrafas, que exploram o linguão-símbolo da banda, criado por John Pasche para o álbum Sticky Fingers, de 1971.
Não será um uísque comum, promete a empresa, que abrirá as ofertas em 6 mil dólares o exemplar. A justificativa vem no material distribuído à imprensa: trata-se de um blend de 6 reservas da casa, cada uma de um ano significativo dos Stones, o de 1962, ano das primeiras apresentações, e de 1990, quando a banda se apresentou no Japão.
A apresentação, aparentemente, marcou o país, mesmo depois de uma espera de quase três décadas de Mick Jagger e sua turma. Mas o fato é que os japoneses continuam comemorando. E, nesse caso, com uma delicada recomendação: degustar o uísque sem gelo. Ou seja, no stones e, principalmente, no rocks…
Quem me contou essa história foi ninguém menos do que o mítico escritor mineiro Otto Lara Rezende. Em uma viagem que fez na extinta linha Rio-Tóquio, pela igualmente extinta Varig, em fins dos anos 70, um grupo que o acompanhava nas quase 12 horas de viagem exaltou (e abusou) da qualidade dos uísques que eram servidos a bordo.
E apostavam na região de origem daquele rótulo tão especial. No desembarque, perguntaram. Com a resposta, o assombro: era um uísque japonês, o Suntory, celebrado até hoje pela idade – estão completando 90 anos de existência – e pela qualidade de alguns de seus produtos, especialmente esse da foto, o Yamazaki.
Trata-se de um single malt tão popular por lá quanto um Glenfiddich por cá. A água puríssima dos arredores de Kyoto está entre os elementos festejados da bebida que, se é surpreendente para os brasileiros, xiitas que são do scotch, é vendida em mais de 30 países, inclusive os Estados Unidos, que contribuíram com a sua projeção.
E suas ediçõs de 25 anos e o safrado de 1984 foram considerados esse ano e ano passado, respectivamente, como os melhores single malts do mundo.
Experimentei a tal Kentish Ale, finalmente. Diz-se das cervejas produzidas na região do mesmo nome, extremo sudeste da Inglaterra, a mais próxima da França. Lá, podem ser encontradas marcas como a Master Brew, a Bishop’s Finger e a Spitfire.
Aromas de compotas cítricas e um amargor suave marcam o paladar dessas cervejas, que ganharam reconhecimento oficial da União Européia, em 1996, como Indicação Geográfica Protegida.
A Spitfire relembra o mítico avião de caça da Royal Air Force – e a própria área como palco dos mais ferozes combates aéreos da Segunda Guerra, que aconteciam na região. A tampa da garrafa é já relembra a insígnia que os aviões envergavam.
A versão original não é forte. Tem 4,5% de concentração alcoólica e espuma consistente sobre um belo manto âmbar, laranja escuro. O nariz é curiossimo e lembra casa da tia, com notas de bolo com geléia de damasco. O amargo gentilíssimo, sem proeminências.
Sua cervejaria, a Shepherds Neame, é a mais antiga em atividade na Inglaterra, com origens em 1732. A Spitfire é uma das atrações de seu portfólio de dez rótulos, sob os quais falaremos à medida que eu puser minhas garras em cada uma delas.
“Poucos chefs profissionais mudaram o curso da história da culinária. Aduriz foi um deles”. A frase é de Ferran Adrià, a respeito do trabalho do restaurante Mugaritz, em San Sebastián, norte da Espanha.
E de seu comandante, Andoni Luis Aduriz, que acaba de lançar o seu livro de receitas. Flores, muitas flores; os queijos do País Basco e os frutos do mar do Golfo de Biscaia estão entre as atrações do livrão, que, claro, conta com prefácio do uber chef Thomas Keller (o mais avançado dos americanos).
Ao longo de mais de 250 páginas, Aduriz descreve a trajetória do restaurante – terceiro lugar na lista 50 Best – e disseca sua técnica ao longo de 150 pratos com seus preparos detalhados e ingredientes explicados – e ilustrados com fotos em pranchas de página inteira.
O livro está com um bom preço na Amazon Books: 30 dólares, com bom desconto sobre os 50 dólares da época do lançamento, em maio.
“Ois de Bairro é o Puligny da Bairrada”. Esse é um dos diagnósticos diretos, sem grandes protocolos, a respeito de uma das regiões nobres desta área do centro-norte de Portugal. E é também a característica da enóloga Filipa Pato, proprietária da FP Wines, localizada naquela que é uma das mais delicadas áreas do vinho português. Ela fala o que pensa.
É uma empresa em que dá a sua cara à tradição da família Pato e na qual mantém os mesmos recursos seculares – inclusive as uvas originais – da região. Baga para os tintos e bical para os brancos, com a entrada de variedades graciosas como o arinto, o bastardo, a água santa, o alfrocheiro, o cercial e o sercialinho. “Minha relação com essas uvas é muito próxima. Meu filho se chama Fernão. Se fosse menina, seria Maria”, brinca Filipa a respeito da casta fernão-pires, também conhecida como maria-gomes.
O resultado é um conjunto de vinhos modernos, que não precisaram apelar para uvas estrangeiras. “Não planto vinhas, aproveito o que está lá – temos um solo e um clima muito especiais e os melhores resultados chegam sempre com o que temos de original”, declarou a enóloga, em evento realizado pela Casa Flora, que importa seus vinhos, que estão obtendo cotações melhores em cada ano, de críticos como Robert Parker e Jancis Robinson.
Paella Pepe Torras, homenagem do restaurante Garden, em Ipanema, ao nosso catalão predileto, artesão (no sentido da arte) das jóias, gourmet, membro consagrado da Companheiros da Boa Mesa.
Ingredientes
200g de camarões pequenos sem casca
400g de filé peixe sem pele, cortado formato de cubos
4 camarões tipo VG com casca, fritos para finalização
250g de lulas cortadas em rodelas finas
300g de polvo cortadas em pedaços e previamente cozidos
200g de mexilhões sem casca e alguns com casca para decoração
1 molho de coentro
½ pimentão vermelho cortado em tiras
½ pimentão verde cortado em tiras
4 colheres de sopa de azeite para refogar o pimentão
1 e ½ xícara de chá de azeite para fazer a paella
2 cebolas grandes picadas
4 dentes de alho picados
1 tomate sem pele e sem sementes picado em cubinhos
200g de arroz cru
1 colher de café de açafrão espanhol em pó
1 colher de café de páprica
400ml de caldo de camarão
1 colher de chá de sal refinado
Preparo:
Lave bem os pimentões , limpe retirando as sementes e corte em tiras longas e compridas, reserve alguns para decoração e outros corte mais em cubinhos. Coloque-os para refogar em uma frigideira com uma colher e meia de azeite. Separe as tiras maiores.
Você deve usar a panela própria “paella”, mas na falta dela ou de habilidade inicial recomendo que se use uma grande frigideira. Se possível aquelas de fundo triplo para distribuir melhor o calor pelo fundo da panela.
Coloque na panela escolhida (paella ou frigideira grande) o azeite e refogue as lulas (bem secas e sem umidade), os camarões pequenos, o peixe, o polvo e os camarões grandes com casca. Deixe dourar bem, tire os camarões grandes para usar na finalização.
Acrescente a cebola, o alho e os cubinhos de pimentões refogados até começar a dourar a cebola.
Despeje o arroz e misture tudo deixando fritar ligeiramente o arroz.
Dissolva o açafrão e a páprica no caldo do camarão e acrescente à paella.
Deixe ferver, acrescente o sal. Adicione os mexilhões e misture tudo bem na panela para que fiquem bem distribuídos.
Abaixe o fogo e deixe cozinhar por cerca de 30 minutos, até o arroz ficar no ponto. Se necessário acrescente um pouco mais de caldo caso o arroz não fique pronto e o caldo seque rápido demais.
Quando você achar que está ao seu gosto decore com as tiras de pimentões e os camarões grandes reservados, cubra com papel alumínio e leve ao forno em fogo baixo por 10 minutos.
A paella do Garden só leva frutos do mar e foi desenvolvida sobre o olhar atendo do catalão Pepe Torras que provou muitas e muitas paella até ficar no gosto deste catalão.
Muita gente enche a boca para se vangloriar de algum produto com denominação de origem em seus pratos. O que eles não sabem, porém, é que, longe de ser um símbolo de status, a chancela é uma proteção oficial.
Por isso, alguns produtos que dispensavam a suposta honraria estão buscando, hoje, a cobertura das autoridades. É o caso do Sel de Guérande, o sal e a sua flor, que surgem da evaporação das águas da costa do sul da Bretanha.
O motivo? A proliferação de outros similares e as suspeitas do uso indevido da denominação francesa, que teve o seu título preservado em julho, em uma providência que se mostrou necessária após três séculos de exploração comercial das salinas daquela região.
É maldade fazer trocadilho com o rum da Jamaica, em relação à cerveja mais famosa da ilha, a Red Stripe. Dizer que é a “ruim” da Jamaica é um exagero purista, mas tenho minha razões. Uma delas é a expectativa risonha de quem provou no local. Tem seu charme, mas, convenhamos, todo aquele arcabouço rastafari, que segue os produtos inebriantes da nação de Bob Marley, virou fumaça – e, pior, deu uma leve apertada em sua gravata.
É cerveja industrial, do tipo lager e, mesmo com todo o amargor proeminente, tende à família das cervejas americanas de massa – e às mexicanas da moda: pouco corpo, paladar molenga, de frescor incidental (justificativa de quem gosta, estupidamente, das cervejas estupidamente geladas) e sem início ou fim de boca que justificasse a fama – ou os 20 reais que me cobraram no estande da Mr. Beer.
Se Jimmy Cliff fosse vivo, ele e a letra libertária de seu “The harder they come”, isso não aconteceria tão facilmente. Mas, depois que o vimos no palco do Faustão, já não podemos contar com seu comando de Brave Warrior. Mas, vá lá, mesmo não sendo de reggae nights, prometo o de sempre: uma segunda chance.
São quatro as pizzas da minha memória afetiva, as duas primeiras, da infantil: a portuguesa do Pizza Pino, rede de Paris, que vinha com um ovo frito com gema mole no meio; a de presunto do Jangadeiros, hoje extinto, onde eu e meu irmão, em um pós-praia com nosso pais, demos um show de esganação que terminou mal (em grosseria) mas poderia ter acabado ainda pior (óbito); e a do Pizza Palace, onde eu conheci a família Perico. Pensei neles quando fiz esse texto sobre a historinha (ou a lenda, sabe-se lá) da pizza, baseada na pesquisa em autores que se contradizem ou – pior, adotam as anedotas disseminadas pela rede. A quarta, a da Eccelenza, quando ainda era Stravaganze, onde eu fiz uma das minhas primeiras fotos gourmets, há dez anos, essa aí debaixo.
Inspiração grega e etrusca, origem italiana, instituição americana e consagração mundial, a pizza surgiu como um prato de camponeses napolitanos, inicialmente à base de massa coberta com gorduras, anchovas e o que mais houvesse – tomates vieram depois; queijos, muito depois. Foi na área da Campânia e suas cercanias (Calábria, Basilicata, Molise, Sicília, Puglia), mais conhecida como Mezzogiorno, que ocorreu o encontro das colônias dos etruscos vindos do norte com os primeiros assentamentos gregos.
Em comum aos dois povos estava o hábito de comer uma massa de farinha de milhete ou trigo, que aqueciam sobre pedras e tinham a função de um prato comestível. Sobre este prato, que os helênicos conheciam como “plankuntos”, que espalhavam-se ingredientes diversos, de gorduras e azeitonas a anchovas salgadas e figos secos.
Os romanos parecem ter herdado a fórmula, segundo o registro do estadista Catão, no século II a.C., que escreveu sobre discos redondos, de massa cobertos com azeite ervas e mel e assados sobre pedras. A denominação pizza, porém, é um mistério. Alguns acusam a denominação “pita”, que se refere ao pão árabe liso. Outros envolvem o dialeto napolitano “picea”. Também arrolados são os étimos “pincere”, “pingiare”, “pestare” e “pizzicare”, que podem significar de “pincelar” a “lançar”. Este último deu origem ao suspeitíssimo “pissaladière”, uma focaccia coberta com cebolas, e anchovas, criação de provençais e genoveses, vigente até hoje como era na época.
Não se sabe em que momento o queijo passou a integrar as receitas de pizzas. Mas é sabido que os búfalos foram trazidos da Índia no século VII, pelo bom rendimento como animais de tração. Com o leite das búfalas, prepara-se a autêntica mozarela, um dos fundamentos do que se deseja de e uma pizza autêntica. Mais tradicional, porém, era o uso do soro, que sobrava do preparo de outros queijos. O líquido era novamente cozido (ricotto), cobria variedades regionais da especialidade e, até hoje, recheia a chamada “pizza ripiena”, mais conhecida por nós como ‘calzone’.
O ingresso do tomate, então tido como venenoso desde que chegou do Novo Mundo, pelas mãos de Colombo, foi uma contingência das camadas mais pobres. O formato de bagos alarmou a Igreja, que condenou o uso da planta e mistificou seu fruto como física e espiritualmente imoral e, por isso, mortal. O expediente não foi tão forte quanto a necessidade da fome, causada por pragas, guerras e quebras de safras de grãos. E, assim, o tomate passou a integrar a dieta do sul da Itália. E também das pizzas.
A combinação alcançou as ruas com tamanho sucesso que de sabor à lenda de uma suposta visita do rei Umberto I à região da Campanias. Sua jovem e curiosa esposa, rainha Margherita, não se furtou em experimentá-la. E, naquela mesma tarde, encomendou ao único estabelecimento da cidade, uma fornada especial. Honrado pela encomenda, o pobre comerciante, um certo Raffaello Espósito, esmerou-se em criar uma receita especial para a rainha com as cores da bandeira da então nascente Itália: mozzarella para o branco, tomate para o vermelho e manjericão para o verde. Estava criada a pizza margherita. No mesmo momento, instituía-se ainda o primeiro delivery da história – dessa, pelo menos.
A receita simples e rústica, a pizza veio a superar as cercanias de Napoli somente em fins do século 19, com a maciça imigração de napolitanos, calabreses e sicilianos para os Estados Unidos. Padeiros e pequenos comerciantes preparavam a nova iguaria para os vizinhos. Mas foi com o fim da Segunda Guerra Mundial, com o retorno dos soldados americanos da campanha da Itália, que começou a febre da pizza na América. Se o preparo rápido e fácil da pizza é a essência do fast-food, foi sob esse formato que a receita alcançou o mundo e, ironicamente, o norte da Itália, onde a fórmula, muito rústica, ainda não tinha chegado com pedigree suficiente para fazer frente ao repertório de finas massas recheadas, risotos, carnes e frutos-do-mar.
O fenômenos das “fusion cuisines” e das técnicas contemporâneas chegaram às pizzas sob a forma das coberturas mais inesperadas. Excessos, exageros e, principalmente, a distância das fórmulas tradicionais levou um grupo de pizzaiolos napolitanos a se reunir, em 1984, em torno da Associazione Verace Pizza Napoletana, que estabeleceu regras de preparo, rigores de escolha de ingredientes e até técnicas de sova de massas. Através de seu regimento, a associação já completou duas décadas de busca em torno de uma classificação pelas autoridades italianas como D.O.C., hoje desmoralizada e bem distante da almejada Denominação de Origem Protegida (D.O.P.) chancelada pela União Européia.
Em 2004, porém, o ministério italiano publicou uma proposta de reconhecimento oficial como S.T.G. (Specialitá Tradizionale Garantita), como alternativa ao pleito de uma denominação de origem legalmente impossível. O caderno de obrigações gerado pela proposta prevê uma receita e três variações sobre a massa de farinha (W 220-380) regada com azeite extra-virgem e coberta com tomate fresco ou “pomodori pelati”. São elas a “marinara”, com complemento de alho e orégano; “margherita”, com a original ‘mozzarella’ STG ou queijo “fior di latte Appennino meridionale” e manjericão fresco; e ‘margherita extra’, com “mozzarella di bufala campana DOP” e o mesmo manjericão da anterior, mas admitindo somente tomate fresco.
Note-se que, das quatro, apenas duas levam queijo, que, para os puristas, é um acessório desnecessário.
Sempre confio na liberdade criativa da Roberta Sudbrack. É uma experiência que nos permite ver uma espécie de lado B dos produtos brasileiros, com um apuro de preparo de nível A. Mas a cada virada de cardápio, a curiosidade e a expectativa chegam com uma pitada de temor: o de não encontrar dois itens que não só pontuam todos os menus de degustação da casa como estão, também, sob o completo domínio técnico da chef gaúcha: um prato de gema e outro de porco. É esperança lúdica, infantil, proporcionada pela amiga Vanda Klabin.
Veio a gema, untuosa, limpa e quase amanteigada chegou com duas guarnições que costumam ser injustiçadas: o alho-poró, em um ninho de fios crocantes, e a flor de abobrinha, em uma milanesa levíssima.
O porco, não veio. Mas a frustração, também não. Veio, aí sim, uma valiosa e (pra mim) inédita variação sobre o tema, a queixada, uma variedade de porco do mato. Antes um ser selvagem e proibido pela histeria preservacionista, foi encontrada em um produtor específico – não entendi qual, na confusão das loas, das despedidas e dos vinhos (interessantes) que regaram o jantar. A suculência do cozimento lento estava toda lá e o suquinho sugeria um pirão de minuto com a farinha ácida, amarela, quente no sabor, um contraponto.
Mas a brincadeira seriíssima do aproveitamento de itens desprezados, que já valeu a Roberta Sudbrack a assinatura no já clássico caviar vegetal (variações sobre o tema sementes de quiabo), já começara antes, com um consomê de casca de abóbora defumada, que chegou na entrada, em um copinho de barro, em forma de jarrinha. E naquilo que ela batizou como “ostra vegetal”, uma colherada de polpa de tomate (aquele que, para meu estarrecimento, muito chef joga no lixo) condimentada e guarnecida com manjericão.
A dupla tomate e manjericão esteve de volta em um petisco gracioso, uma autêntica caprese tropical: o palmito bebê, em que um broto de pupunha puxava a lista dos produtos brasileiros típicos. Foi o caso do cará, que atuou em dois pratos: como recheio de um ravióli com textura de nuvem e um caldo concentrado de galinha caipira. E em uma trilogia de castanha crua e outro item nosso, o aviú, camarão seco e defumado – e crocante, e salgadinho.
Outro duplo estrelato foi o do piracuí, que é uma palha do pirarucu seco e ralado. Levíssimo, puro sabor, escoltou uma burrata com cobertura de ovas de salmão. E foi o condimento sobre o ravióli de cará. Outro item com a marca do Norte-Nordeste, trazido por Roberta, que chegara de viagem na véspera, era o toque crocante de uma combinação criativa, a da tâmara com chá preto.
O robalo, um peixe injustiçado pela ditadura de salmões, chernes e badejos, chegou com um carimbo de terra brasilis: o jambu, com seu travo quente e entorpecente. O leite frito da sobremesa é um delicado tapa na memória afetiva: quase uma creme brulée frita e regada com um caramelo que me lembrou o melhor da bala toffee.
Enfim, infância pura: na seqüência lúdica, cheguei querendo meus dois presentes. E ainda saí cheio de brindes. Não esqueço, Vandinha!
Lulas, camarões e toda uma nobre corte de frutos do mar são os itens que eu provaria dos cardápios de 46 restaurantes que participam da versão 2012 do Festival Gastronômico de Búzios, que começou ontem, dia 6 de julho, e segue até o próximo sábado, dia 14, com a participação de membros da comunidade e, no rastro do sucesso em programas de televisão, do novo trend dos eventos gastronômicos: os chefs mirins.
As lulas são as estrelas de pratos como a versão do La Barceloneta para o clássico chipirones en su tinta e as lulas recheadas e servidas com molho de tomates e ervas, do restaurante Captain.
Já os camarões guiam o paladar de quatro outros restaurantes, como o Buzin, com sua paella valenciana, o Mineiro Grill, com um interessante canudo de camarão com tomate e requeijão, o Sale e Pepe, com a sua sopa calabresa de frutos do mar e, finalmente, o Sawasdee, com um prato de inspiração indiana, o shrimp kerala, à base de curry.
Há ainda a lagosta ao espumante, do Pátio Havana, a casquinha de siri, do David, e, talvez o mais instigante de todo o festival, as sardinhas verdes do Escritório.