O Kremlin do rótulo é a indicação do rumo dessa imperial russian stout, mais um artesanato da Antuérpia, assinada pelo mestre jedi Giancarlo Vitale. Apesar de todo o envelhecimento, mantém frescor, acidez, alegria, beleza no manto de carvão e na carbonatação densa, que gera uma espuma de tons de avelã. Mas o que essa cerveja ganhou do barril foi um travo a mais de baunilha e uma ponta daquilo que um uísque puro malte traz no nariz – defumado e uma apertada a mais no aroma de cumaru, com o jeitão do que a semente tem da melhor de condimentação.
É o tipo de maturação que nos faz sonhar com um uísque envelhecido em amburana, a madeira em questão, já acostumada a amansar o álcool de nossas cachaças. E põe álcool nisso, imperceptível, apesar dos 11% de graduação. É mais um episódio da série “tirem as crianças da sala”. Afinal, agitação infantil e coisa fina não combinam, especialmente deste caso, de uma série especial, limitada, numerada.
A carbonatação é densa, com colarinho avelã, de aroma profundo, com direito àquele dos caramelos quentes, do tipo “puxa”, que deixam uma sensação de chocolate amargo persistente, mais ainda quando ganha temperatura. No fim do paladar, um convite, um apelo, um grito, uma convocação às armas do lado salgado da força, como no caso de um sanduíche de bom pastrami. Ou de uma especialidade de nossa infância, hoje em extinção, a carne assada.
No mais, por mais sedutor que a doçura da cerveja sugira, não se deixe levar pelas enganações e evite as sobremesas. Por mais achocolatado que o paladar entregue, pode até ajudar o sorvete, o bolo de chocolate e a floresta negra. Mas a recíproca não é verdadeira e nenhum deles vai ajudar a cerveja. O grosso de cremes e manteigas desequilibram o fino da bebida, entre eles o paladar ácido de uma fruta vermelha. Seriam os morangos com Kremlin?
RÓTULO: Kremlin
PRODUTOR: Antuérpia
PAÍS: Brasil
ESTADO: Minas Gerais
CIDADE: Juiz de Fora
ESTILO: Russian imperial stout
ÁLCOOL: 11%
IBU: 62
LÚPULOS:
MALTES:
Recebo correspondência de John Mariani todas as semanas. Não, ele não tem ideia de quem eu sou. Mas privo de sua intimidade porque acompanho suas resenhas semanais sobre os restaurantes em torno de sua base, em Nova York. Até restaurantes no Alaska e em Ohio, onde não há restaurantes, ele relaciona.
E durmo com ele muitas noites, quando seus livros escorregam na minha cabeceira depois de tentar ler, já com o olho fechando, aquele últiimo, só mais um, de seus verbetes temperados com informação e graça, seja do American Food and Drink Dictionary, que já resenhei aqui, seja deste alegre Dictionary of Italian Food, que eu, sozinho, me encarrego de celebrar os seus 20 anos de lançamento.
É um fundamento, em paperback (livro de capa mole), sobre o seu ponto de vista daquela gastronomia tão vasta: aquela que interessa ao americano de ascendência italiana, especialmente os do sul – calabreses, sicilianos, puglieses – ou do norte, com venezianos e tiroleses.
Nada menos do que 2.500 verbetes, ao longo de 320 páginas, pontuadas com receitas simples – a cozinha italiana é simples – de poucas linhas de informações, mas páginas e mais páginas de informação, que, ligada à história, fazem do livro uma diversão em cada página.
Inclusive a capa, lindíssima, alegríssima, confeitada como em carnaval – no livro, aliás, aprende-se que nosso esquecido confete, amigo da serpentina, vem do veneziano ‘confetti’, que eram os pequenos confeitos que as damas jogavam das janelas quando apreciavam uma fantasia, ou quem estava dentro dela, durante do belo e chato desfile das figuras da Commedia dell’Arte.
Sugestão a quem quer aprender: vá à Amazon (link dedicado ao livro aqui), que, mesmo com o livro esgotado, mantém uma rede de gente que tem o estranho hábito de comprar o livro, lê-lo e vendê-lo. Azar o dele, sorte nossa.
Breakfast vegetariano, por que não? Arinto, avesso e a espetacular loureiro são nas uvas nesse vinho, uma graça por dentro e por fora. Ligeiramente frisante, muito refrescante, para ser tomado com a tranquilidade de um refrigerante.
Dona Alface, da Casa das Hortas, uma das estrelas do evento dos Vinhos Verdes, que acontece neste fim de semana, no Village Mall, com uma curiosidade que diz muito sobre a diversidade da região e de seus cortes: este não tem alvarinho!
Me aflige um pouco essa coisa de encher a cerveja de ingredientes. Fico sem saber como é a cerveja original e o excesso de alguns rótulos resultam em algo que destrói o paladar como aquele pinheirinho aromático de taxi dizima meu humor. Mas nesse caso da foto, o capim limão não prejudica a sensação dessa amber lager, uma raridade em um mundo de ales. Pelo contrário, conferiu um tempero inesperado e refrescante, como convém a esta variação do estilo alemão, que, mesmo com os maltes torrados dessa variação, de refrigerar a boca e a alma.
Pausa no banquete nipônico para algo que não é comum no dia-a-dia dos japoneses: o sashimi. E com ingredientes, que, por incrível que pareça, não fazem parte da rotina brasileira: o peixe de nossas costas. O mais fino deles, a guarajuba. Ainda rosinha, a perna-de-moça. O do vermelho Pantone, o buri, olho-de-boi. No selado da casquinha, rima a cavalinha. Três frescos e um levemente selado, sem pavores como salmões, abacates, mangas, cream cheeses, teriyakis e outras sandices macaqueadas dos americanos.
Quem diria, a melancia, gigantesca, quase inconveniente, mas de polpa fresca, de um vermelho irreproduzível, já era pop há mais de um século, muito antes que chefs como Carlo Cracco e Andoni Anduriz, do Mugaritz, trazerem seu frescor para os contrastes de suas degustações. Aqui, foram seguidos por Pedro de Artagão, Felipe Bronze e, no melhor dos casos, por Tomás Troisgros. Foi pop na lente do fotógrafo Willy Rizzo, que fez a foto da fruta sendo massacrada por Jack Nicholson em um café da manhã com cara de ressaca.
Antes deles, Paul Cézanne e Umberto Boccione deram suas interpretações da fruta, que já estava no imaginário de outros pintores de narturezas mortas, entre eles James Peale, que fez pelo penos quatro tentativas de retratar uma fruta que chegava na Europa com frescor comprometido. Na mesma época, o americano Levi Wells Prentice e outros pintores e naturalistas mostravam o lado sexy da melancia. Em termos de climas, Cézanne e Boccione se deram bem – pintaram em climas quentes, tão amigáveis à fruta. Jane Grigson confirma essa felicidade, em seu gigantesco “Fruit Book”, em que faz o melhor histórico da origem que muitos julgavam tropical e nativa de um cenário de cocos e abacaxis. Ledo engano.
Grigson entrega a viagem de David Livingstone (o mesmo de “Dr. Livigstone, I presume?”) que viu, em 1850, campos inteiros da fruta surgindo, espontâneos, do meio do deserto de Kalahari. E denuncia a surpresa que a a descoberta causou na época, já que os arquólogos já sabiam de restos da fruta em tumbas egípcias das primeiras dinastias. Gregos e romanos já a conheciam, mas, curiosamente, não a classificaram. Pior: somente em 1597 elas chegariam a Londres. E cruzariam o Atlântico, em 1629, para assombrar o povo de Boston.
Os anais gostam de reproduzir as bobagens de José Juan Tablada, um diplomata mexicano que, que ninguém nos ouça, era parecidíssimo com Monteiro Lobato tanto na aparência quanto no estilo infantil. Ele declamou, em métrica haikai, constrangedora:
¡Del verano, roja y fría
carcajada,
rebanada
de sandía!
Hoje, italianos e espanhóis são os maiores produtores de melancia da Europa. Israel, o maior fornecedor do continente. Mouros e bérberes a introduziram na Espanha e na Sicília, durante a ocupação nas regiões, no século 11, e nos então existentes campos africanos próximos ao Mediterrâneo. Além da polpa refrescante e luxuriante, os espanhóis usam a semente para picá-la com água e transformá-la em um dos refrescos mais originais e festejados dos bares e lanchonetes ibéricos, a horchata. Na Sicilia, o “gelo d’anguria” é um doce gelado de melancia triturada, misturada com chocolate e açúcar.
Curiosamente, a melancia vai contra o caminho das etimologias de outras frutas, que são semelhantes, mesmo em regiões diferentes, ou se dividem em nítidas áreas linguísticas. O watermelon dos ingleses está em todo o mundo normando-germânico, por exemplo, como uma descrição quase óbvia de uma fruta com polpa com mais de 98% de teor de água. É o wassermelone dos alemães, o watermeloen dos holandeses; o vattenmelon dos suecos, o vandmelon dos dinamarqueses, o vannmelon dos noruegueses.
Mas dali pra baixo, quase não há equivalências. Como em praticamente todo o seu vocabulário, a própria expressão portuguesa poderia ser uma corruptela de “melón de sandía“. O mais próximo dos árabes, que fizeram a fruta circular pelo mediterrâneo, teria sido o francês pastèque, a partir do original ‘bathyk’ ( بطيخ ). Para os italianos, a influência grega gerou o cocomero e a anguria. Coco, miolo; angurion, idem.
Se um dos sinônimos de cozinha à japonesa é delicadeza, ela está toda nesse prato acima. Uma salada de magret defumado de pato, cogumelos-paris (ela prefere os frescos, cortados na hora), leguminhos e verdurinhas da estação. Foi o Sushi Leblon recebendo Telma Shiraishi, do paulistano Aizomê: elegância no preparo (foto 2), no sorriso (foto 3) e nas apresentações (foto 4).
Black angus, telinha de provoleta e cebola prensados ao ponto de uma óstia, shitake e legumes em refogadinho de pimentões em teriyaki, maionese de wasabi, picante de mergulhar dentro. Jantar inesperado e, já que não tem o queijo corredio, temos algo que eu não provo há muito tempo: um hambúrguer delicado mas intenso, complexo e saboroso e, seguredo máximo na área, um pão que levante mas não se sobreponha.
Gostando de ver o avanço das cervejas no estilo IPA no rótulos próprios dos restaurantes. Antes, tínhamos cervejas fáceis, como as lagers, de linha alemã ou as pragas à base de trigo, nenhuma delas com qualquer paladar mais corajoso. Aqui, como já reportei com os posts sobre a red ale do Lasai com a Wäls, sobre a Blind, do Esplanada Grill com a Antuérpia e, mais recentes, a stout e as barley wine da Camolese com a Kátia Jorge, o cenário começa a mudar.
Na área dos sanduíches “artesanais”, a história ganha lógica. Antes, tínhamos uma cerveja neutra, somente para enxaguar a gordurada das chapas que não se apagam – qualquer refrigerante enxagua igual. Mas se o craft burger tomou tempo e recursos de quem o produz, vale a pena uma cerveja cuidada no trato e cuidadosa no resultado. É a sensação que eu tive na B de Burger do shopping de Botafogo.
#talheresbeers #colunaletrasgarrafais #bdeburger #riocraftbeer #braziliancraftbeer
A cineasta Antonia La Porta solta seu lado gourmet e nos traz
uma bela dica de Miami Beach, onde mora e estuda.
O prato da foto acima é o octopus a la planxa, um polvo grelhado com batatas assadas, ervas, molho de maionese apimentada com kimchi e tintura de lula, que envolve o prato, causa impacto com sabor suave e diferenciado, mas complexo e sofisticado. É uma das sugestões do chef José Mendín, do Habitat, no badalado 1 Hotel, na Collins Avenue, em South Beach, Miami.
O charme do ambiente é a combinação entre luz indireta e madeira, que aquece, acolhe e prepara o cliente para uma série de pratos bonitos e criativos. O cardápio tem foco nos frutos do mar, mas é bastante variado nos estilos de preparo, das influencias mexicanas do chef ao estilo japonês do raw bar, passando pelo toque coreano do kimchi, o que traz ao conjunto uma combinação de ingredientes que eleva o paladar a uma experiência única numa mistura leve e exótica.
Na sobremesa, mais surpresa, com sabor tropical e nome divertido, o barbe-à-papa (francês para algodão doce). Combina uma base de abacaxi, musse de coco e algodão doce por cima. O garçom arremata o serviço com uma calda de abacaxi com erva-doce, que faz com que o algodão doce se desmanche e se funda à musse de coco. É uma combinação rara e deliciosa, com o molho, cítrico, atenuando o doce.
O ambiente também conta com um bar na varanda que se assemelha a um trailer, para aqueles que desejam apenas apreciar os drinques da casa. O restaurante fervilha aos sábados à noite e fica impossível conseguir uma mesa sem fazer reserva. Durante a semana não é muito diferente, afinal Miami não dorme.
Esse post deu um trabalhão, mas o final foi poético. Interpretei nariz e basco, boca e braile para identificar o que está aí, o Mendraka Txakolina, da uva hondarrabi zuri, que resultou, em interpretação livre, no “papo em torno do vinho da areia branca”.
Explico. Txaco é conversa. Hondarra, areia. Zuri, branco. Acidez aguda, deliciosa, daquelas de salivar, própria para encarar os pintxos bascos, os tapas dessa área em que tanto a revolução quanto a evolução estão na pele das flores e à flor das peles.
Crédito para a raça da sommelière Maira Freire, que não só levou o vinho para a carta do restaurante Lasai como o destacou não como vinho branco, mas sob a original rubrica “Limão”, onde relaciona vinhos igualmente cítricos e minerais, como já fazem os mais modernos vinhos europeus.
Nada como um evento de vinhos para saber o que acontece no mundo das cervejas… em Portugal. Qual a lógica? Muitas delas estão investindo em rótulos próprios, com parcerias com cervejarias artesanais locais, com uma vantagem extra: as vinícolas já têm o que é necessário para atender a uma das exigências atuais, o barril para envelhecimento. A tendência em Portugal não é novo lá e nem aqui – a Exame já deu isso há dois anos, mas com poucos exemplos e sem a espuma devida. Fica a dica: os enólogos portugueses sabem muito sobre cervejas.
No ano passado, quando Pedro Mansilha Branco, da Quinta do Portal, no Douro, apresentou sua safra nova, me trouxe também a cerveja que estava lançando, a Portal Oak, uma dark ale produzida na Letra, produtora badaladissima da região. A cura, por um ano, foi realizada em barris de vinho do porto que a família Branco produz em Pinhão. Redonda, torradinha, longa e, mesmo com seu álcool alto (12%), equilibrada, com direito a rolha, mostra a rota de Portugal no descobrimento de novas cervejas.
Em fevereiro, em outro evento de vinhos, um famoso alentejano me soprou o surgimento de outras tres outras cervejas ligadas ao vinho. A primeira, que a nobre Niepoort, outra referência em vinhos do porto, que já estaria, discretamente, envelhecendo sua primeira partida em barris próprios. A segunda, que a Quinta de La Rosa, e nossa intrépida Sophia Bergqvist (portuguesa, apesar do nome), autora do que há de mais moderno entre os vinhos do Douro, lançará o seu rótulo nos proximos dias.
A terceira e mais barulhenta de todas, a que a vinícola Herdade do Esporão entrou firme no mercado de cervejas, não em alguma parceria, mas com a aquisição da Três Cervejeiros, que já tem a sua linha Sovina consolidada com rótulos em vários estilos. A notícia foi confirmada, ontem, no Porto, onde a Esporão mantem as operações da espetacular Quinta das Murças.
A ação não é exatamente uma novidade. Na Califórnia e no Oregon, a ação é corriqueira e segue a escola das cervejas maturadas em barris de bourbon e hard cider, em técnica que os franceses aplicam com barris de conhaque. No Chile, o núcleo da cerveja artesanal de Valdivia e Puerto Varas já se esbalda nos barris de vinhos fortificados do Valle Central. No ano passado, chegaram ao sul do Brasil as primeiras unidades que um dos proprietários da vinícola Juanicó produz com envelhecimento em seus próprios barris.
Nas visitas a vinícolas do Douro, nota-se que a convivência da cerveja com o vinho não é de hoje. No ano passado, a própria Sovina já podia ser degustada na rota do Vinho do Porto. Mesmo no Porto, em pleno estádio do frescor dos vinhos verdes, experimentamos iniciativas artesanais como a Bohemia (a deles), da gigante Sagres, tanto a pilsen quanto a bock, da boca da garrafa. A Tagus, que só fui conhecer no aeroporto, para limpar a boca dos taninos, foi uma das boas lagers que eu venho experimentando.
Tem mais corpo do que os diversos tipos da cerveja alemã de lagar, que mata a sede e, ao mesmo tempo, dá uma sensação de comfort beer. Coisa de quem está acostumado com a estrutura do vinho. Aroma trigueiro, de malte rico, paladar de pera e um lúpulo discreto completam o conjunto da cerveja, batizada com o nome que os romanos deram ao rio Tejo, que começou artesanal e, hoje, pertence ao grupo Sumol, marca que se dedicava aos sucos que tomávamos no café da manhã, eu e meu irmão, antes de irmos para a fria escola de nossa infância. Hoje, integra outro grupo cervejeiro, o Damm, das cervejas espanholas Estrella e das séries especiais que desenvolveram com o uber-chef Ferran Adrià.
Por conta das experiências de cervejas com barris, os portugueses cruzaram fronteiras que os produtores de uísque na Inglaterra já tinham tentado. A O’phelia, da Maldita, de Aveiro, norte de Lisboa, tem o trabalho feito em duas mãos. Antes, a cerveja matura no barril. Depois, o barril vai para a Irlanda, onde envelhece uma versão do clássico irish whiskey Jameson – e ganha esse apóstrofo do nome. Em cinco anos, o barril está de volta e torna a receber a O’phelia. O resultado, dez meses depois, é uma irish red ale por nada módicos 12,65 euros, algo em torno de 50 pratas.
Para quem quer saber qual o pedigree da Maldita, Aveiro é a cidade dos ovos moles, sobremesa indicada para a robust porter da marca, eleita a segunda melhor do mundo na categoria “cerveja escura internacional”, na International Brewing Awards de 2015. Para acompanhar o café ou o charutão depois dessa farra, outra referência lusa, a sua english barley wine, campeã absoluta na Europe Best Beers 2014.
Agora, é aguardar os próximos eventos de vinhos portugueses… e conhecer melhor as suas cervejas. Aparentemente, lá, nao há jogo de enólogos x cervejeiros, mas sim enólogos + cervejeiros.
Ainda são raras, as experiências da lupulagem contínua, inclusive no fim do preparo, com os lúpulos secos, no fenômeno conhecido como ‘dry hopping’, para o preparo da quinta essência das IPAs. Por isso, qualquer uma dessas experiências que chegam com a novidade já equilibrada e redonda, mas muito vibrante e persistente é uma alegria.
Mas o fator surpresa dos cervejeiros da Dogfish Head é montar todo esse laboratório de sabores e saberes em cima do inesperado, o vinho – mais exatamente o mosto de uvas syrah, com o trabalho cirúrgico da lupulagem contínua. A ideia veio de uma daquelas brincadeiras juvenis, em que um joga um lance do vinho que está tomando na cerveja do outro.
Só que a outra cerveja era o clássico Sixty Minute IPA. E quem provou o resultado foi o próprio Sam Calagione, presidente da cervejaria. E o resultado, pelo visto, impressionou em tal nível que até as tintas do rótulo ganharam pigmentos da uva e do malte. Lance de mestre para uma cerveja histórica, lançada em março de 2013 – provamos em 2014 e reposto agora, quando a experiência completa meia década de complexidade na cabeça e de inteligência no copo.
Meu lema: bom gosto e gosto bom, nessa arte à la Monet. Lindíssimo rótulo da “IPA Nema”, session IPA que a carioca Three Monkeys acaba de lançar. Manto bronzeado, corpo fino, leve como convém, duplamente refrescante pelo efeito da chamada DDH, uma dupla rodada de dry hopping, com a carga dos lúpulos no fim do preparo elevado a uma adorável potência de amargores, aromas e sabores.
Na arte do rotulo, um grafismo que, de fato, relembra o quadro “Impressions: soleil levant”, que Monet pintou em 1872 e o excluiu do Salon, que era a grande mostra da epoca. Por zombaria, debocharam do nome do quadro e, tentando insultá-lo, tacharam-no de “impressionista”. Deu no que deu. No grafismo modermo, traço semelhante foi visto nas pistas de Fórmula 1, decorando a mais bela de todas as Benettons, a de Gerhard Berger, em 1987.
Pacherenc du Vic-Bilh. Mal se reconhece o francês dessa esplêndida apelação do Sud-Ouest, nova denominação francesa de vinhos estalantes, reluzentes, brilhantes, das encostas dos Pirineus. Se nenhuma das palavras está nos dicionários, é porque a tradição da língua occitana, com seu braço gascon, seu charme de Catalogne Française e seu meio sangue celta vai prevalecer. É uma das atraçoes mais agradáveis da nova carta de vinhos do Bazzar.
Que o diga o inquieto, dinamico e biodinãmico Alain Brumont, que sempre sacode o mercado do Velho Mundo com nova ideias. Uma delas, vejam só, a de resgatar as técnicas ancestrais daquela região – e também suas uvas, que mostram a sua cara seca, ácida, sem interferências de madeiras, mas com o repouso sobre as lias, o manto do próprio fermento. O resultado remete a uma linha ainda mais fresca do viognier.
Fui pesquisar mais sobre a petit courbu e descobri algo sobre seu pedigree: 1) é do mesmo ramo genético do que a tinta tannat, que andou esquecida pelos vinhos de Bordeaux até ser relembrada pelos tintos uruguaios. 2) quando a crítica Jancis Robinson se referiu à uva, o exemplo foi exatamente… Alain Brumont! Tanto quanto a língua, as antigas técnicas se mantem – é o que faz da denominação um artigo tão especial. O mesmo com as uvas.
Se a petit courbu é a uva quente da estação de Alain Brumont, é também o anúncio da estação fria da carta do Bazzar. Tremenda opção para explorar uvas diferentes e paladares mais ainda.
Beleza de café, beleza de kaffee, beleza de kölsch. Explico: as cervejas kölsch são marcos da leveza e da sutileza dos estilos de Colônia (Köln), na Alemanha. Sem forças e proeminências, abre espaço para dar à bebida outros sabores – no caso desse rótulo da carioca W.Kattz, o café (lá, “kaffee”), que entra também leve e também sutil. Rótulo alegre, elegante, beleza de cerveja e que, ao contrário do espresso que nos acende de manhã, é um café que ajuda a contemplar essa grande madrugada que nos ofusca o dia-a-dia.
O que temos no cardápio dos sábados e domingos do restaurante e cervejaria Noi Leblon não é uma feijoada. Antes, é uma sequência biográfica do chef da casa, Fernando Almeida. Jeitão humilde, bem mineiro, de palavras arrancadas mas saborosas, ele conta como conheceu o feijão cannelini durante os anos em que viveu em Boston, trabalhando na área de banquetes do Museu de Ciências.
O cannelini é um tipo de feijão branco, semelhante ao que os franceses usam no preparo do cassoulet. De grão alongado, cor de marfim, elegante na aparência e no paladar, é delicado ao ponto de gerar um caldo aveludado, sem peso, mesmo ao absorver os sais e os fumeiros da carne seca e do chouriço português.
Com a feijoada que prepara, que chega à mesa com o refinamento de um feijão rico, Fernando prepara uma farofa de cúrcuma e a sua versão do arroz de brócolis português, todos eles com a leveza que exigiam os clientes de seus 22 anos nos Estados Unidos, dos craques do Celtics ao ex-vice-presidente Al Gore.
A fórmula chegou ao Noi já pronta, arpovada e com um tempero de vitória – Fernando foi o vencedor do concurso Fecha a Conta, quadro do programa de Ana Maria Braga, exatamente com esse prato, com votos de profissionais como Katia Barbosa, uma autêntica feiticeira da arte em feijão.
Para acompanhar, duas dicas diversas das torneiras da casa. Uma, a Noi Sicilia, que, com seu toque cítrico rebate com a mesma intensidade que as laranjas proporcionam nas feijoadas clássicas. Ou uma Noi Rossa, que, com seus tons de torra, fazem parceria com os defumados da carne. Repito, não se trata de uma feijoada comum. Mais do que isso, é um feijão rico, untuoso, com uma textura na qual só os mineiros como Fernando sabem chegar.
Uma das antigas histórias sobre a trajetória dos vinhos de Lisboa já apontava o rumo da qualidade do futuro vinho da Estremadura. Dizem autores como Richard Mayson, em seu livro Wines of Portugal, a respeito do sucesso daqueles vinhos em Londres, – na época da presença das tropas dos aliados ingleses, durante a resistência de Portugal ao exército de Napoleão.
Esses vinhos poderiam vir da área de Torres Vedras, norte de Lisboa, um dos fortes da defesa, e de suas cercanias, que forneciam o vinho para as tropas. Ali, muitos produtores de outras áreas do país, aprimoraram sistemas, plantaram novas uvas e refizeram a fama da região, conduzindo normas que autorizam, hoje, mais de 80 castas diferentes.
O reflexo das novas experiências está em rótulos como a Quinta do Pinto Branco (R$ 106,30, na loja A Garrafeira), composto por três uvas portuguesas – arinto, antão vaz e fernão pires – e três francesas – chardonnay, roussanne e sémillon. O resultado, complexidade, aromas, qualidade e a raça dos rótulos da nova denominação dos vinhos de Lisboa.
O frescor dessas sardinhas chega a ferir os olhos. Pescadas a metros do restaurante La Marine, escolhidas a dedo pelo chef Alexandre Couillon, eleito cozinheiro do ano pelo Guia Gault-Millau, colhe um misto entre o frio do Golfo de Biscaia e a tradição dura mas adocicada da desembocadura do rio Loire.
Noirmoutier é berço de delicadezas como ostras e flores de sal, quase uma ilha ligada por um fiapo de terra ao norte de outra referencia, Bordeaux.
A linha do restaurante, que busca sua terceira estrela no Guia Michelin, combina mar e legumes frescos, servidos em menus-degustação, como somente lá podem ser degustados e, muitas vezes, reconhecidos – os antigos habitantes de Noimoutier tem seu vocabulário próprio, remanescente do frances falado na época da Revolução Francesa
5 Rue Marie Lemonnier,
85330 Noirmoutier-en-l’Île,
France
Recentemente, fiz uma matéria belíssima sobre a arte brasileira nos rótulos de cerveja. Por mais que o meio venda uma imagem irreverente, apuramos rótulos de beleza rara, estilos apurados, grafismos belíssimos. É arte seria, como já foi a nossa criação de capas de discos. Pena que não deu espaço para todas.
Especialmente essa aí, a catarinense Dom Haus Barley Wine, exuberante como seu desenho, em um estilo robusto, difícil de se obter, fácil de se errar – já vi exageros em caramelos, desequilíbrio no álcool, surgimento de amargores, em um resultado incompatível para o que é uma cerveja nesse estilo elegante, uma comfort beer, de degustar lento, contemplativo e, pelos alto teores, cauteloso.