Até pouco tempo, o pirarucu era uma vítima de seu próprio nome, alvo de rimas de gosto duvidoso barrando seu acesso ao olimpo das mesas mais refinadas, que o recebiam mais como curiosidade tropical do que por seu paladar internacional. Mas a coisa está mudando. Recentemente, os cuidados em torno deste gentil monstro amazônico, de até 3 metros de comprimento, de instinto manso, mas com força para arrastar um barco para o fundo do rio, deram novo status ao peixe e à cultura que o cerca, práticas artesanais que abriram espaços em fóruns internacionais de preservação de faunas que somente outros peixes como os atuns e as baleias conquistam.
E assim surge, quase como uma grife, o novo pirarucu, o pirarucu de manejo, com direito a denominação de origem, a oficial D.O. Mamirauá, uma das áreas da pesca da espécie no altíssimo Amazonas, uma surpresa na mesa e uma alegria para as comunidades que vivem de sua pesca, de sua secagem ao sal e ao vento, em estilos semelhantes ao de um bacalhau, mas com a vantagem dos teores de ômega-3, que se obtém, neste nível, somente do salmão dos mares do norte. É brasileiro, apesar da distância, 3.300 quilômetros de suas áreas até nosso litoral, a mesma distância do Rio a Bariloche.
Hoje, o pirarucu de manejo chega fresco, embalado a vácuo, o que mantém a suculência original, e o resultado é um corte macio, tratado na grelha fina. No Rio, o exemplo vem da cozinha do chef Camilo Vanazzi, que poderia ter levado o prato ao cardápio principal, mas preferiu levantar o menu executivo do almoço do Émile, do Hotel Emiliano, em Copa, com a nova marra do peixão. Na guarnição, um purê de couve-flor queimada e uma couve que nem as avós fazem tão tenras.
No paladar, a textura macia de um nível alto de colágenos, que o olho experiente já sabe manter pela convivência do chef com esse tipo de carne. “Não é um tiro ao acaso, já que o peixe frequenta a mesa do restaurante desde 2019, dois anos antes do surgir a Denominação de Origem Pirarucu de Mamirauá, a única de um peixe de rio no Brasil”, diz Camilo, que, em outros cardápios, chegou a defumar e confitar o pirarucu, para servir com escamas de nabo, sofrito de tinta de lula, ora-pro-nóbis e consomê de tucupi preto.
Outro exemplo recente foi o da Isis Rangel, no Gabriela Gourmet, com o mesmo tratamento delicado sobre a grelha e guarnição simples de legumes refogados. Valeria a pena provar de novo, mas o refinamento do prato não foi suficiente para sustentar a ideia do local, e o projeto da casa foi suspenso. Outras experiências dignas de uma noite de provas incluem o pirarucu no espeto, que circula pelas mesas da Churrascaria Palace.
São exemplos recentes, que seguem outra grife ligada ao pirarucu, a de Claude Troisgros, que fez o que devia: apresentou o peixe ao tucupi. “Crocante por fora, supermacio por dentro”, definiu rapidamente o mais brasileiro dos chefs estrangeiros, na época em que o pirarucu de manejo foi posto à prova, também em 2019, com os filés do pirarucu chegando ao Rio e, por ideia dele, levadas ao menu da classe executiva da Azul.
Mas antes mesmo de Troisgros, Felipe Bronze já extraía os sabores do pirarucu, e não só de suas carnes, mas também de suas essências. Já em 2014, ele servia a barriga do peixe com o “mocotó” extraído de espinhas e aparas. O mesmo mocotó veio servido em um copinho, no melhor estilo de um caldinho de boteco, guarnecido com uma mini-baguete. Intensidade, untuosidade, criatividade, todos em nome de sustentabilidade e responsabilidade.
Entre as sugestões “à la française”, há os patês, terrines e rillettes que Frederic Monnier produz artesanalmente e distribui para todo o Brasil. Ou “em croûte” – na crosta – a de massa, tal como um filé à Wellington. Em ambos os casos, são receitas aplicadas aos mais finos peixes de rio da França, que, tal como cá, levou conforto a comunidades que penavam com as sazonalidades e o sofrimento dos rios de margens industriais.
Peixe gigantesco, triássico, de escamas grandes e duras como moedas, típico da bacia amazonense, o pirarucu já reinava antes mesmo do rio existir – era um grande golfo até que o movimento de terras, que separou América do Sul da África, reduziu o rio ao seu curso atual, há cerca de 100 milhões de anos. Da cor vermelha que desenha cada escama, pode vir a pista do nome, “pi’ra” e “uru’ku”, ou “peixe da cor do urucum”.
Sua carne pode ser consumida pura, o que era raro e específico de onde é encontrado fresco, e preparado em grelhas ou em caldeiradas, embora o mais comum é ser desidratada em salmoura, no melhor estilo do bacalhau, e ser vendida em mantas enroladas. Em todos os casos, o tucupi paraense ou a moqueca baiana são clássicos em que a maciez do pirarucu surpreende.
No primeiro caso, vale a tentativa que a chef Natacha Fink sugere em sua receita no site que une os esforços em torno do pirarucu, o Gosto da Amazônia: ela usou o tucupi mais claro, enquanto Vanazzi optou pelo tucupi preto. No caso da moqueca, a sugestão é simples, com o filé inteiro, como o que o Arataca costumava manter no seu cardápio.
Neste ponto, pode ainda ser preparada como o próprio bacalhau, dentro das velhas tradições portuguesas e espanholas. A essa especialidade, os mercados regionais das margens do Amazonas denominam ‘piraém’. O clássico pirarucu de casaca, é uma farofa do peixe desfiado com banana frita e ovos cozidos. Das espinhas, tripas e miúdos do monstro, após o fim de seu defeso, sempre em 30 de março, prepara-se o ensopado ‘guererê’, enquanto seu couro gordo fornece torresmo fino no óleo e sua língua, depois de seca, é usada para ralar o guaraná.
No Peru Amazônico, outro chef assume a proteção ao peixe, lá conhecido como ‘paiche’: Gastón Acurio. Sua carne rosada pode ser consumida pura, em ceviches ou em sashimis, ou filetada para o preparo na grelha ou na caldeirada, como no caso do ‘sudado’ ou a fritura no óleo, para acompanhar o ‘tacu-tacu’. Picada, é a matriz do ‘picadillo de paiche’ ou ainda do ‘sanguchito de paiche’, sanduíche preparado para as crianças, mas de carga tradicional suficiente para elevá-lo ao cardápio emocional que o próprio Acurio oferece em seus restaurantes.