Na gastronomia de Nova York deste início de outono, a ordem dos ingredientes sofreu uma inversão. O foie gras está discreto, a barriga de porco começa a perder força e o ovo volta à sua condição de acompanhamento. Nem carne, nem peixe: quem manda é uma erva, invisível no garfo e pouco prestigiada no Brasil — o funcho.
Seu aroma guarnece pelo menos um prato do cardápio de qualquer grande restaurante ou um item das intermináveis degustações que marcam a temporada gourmet de Nova York. Mesmo controversa, por conta de um sabor que remete ao anis, parente direto da planta, e ao aneto, seu primo predileto, é um ingrediente que nem todos provam — mas, aqui, a maioria aprova.
Avaliando prato por prato em uma série de restaurantes estrelados da cidade, a onipresença do funcho só não alcança as sobremesas. Entre as carnes, o ingrediente perfuma o rib eye do Per Se e a vitela à milanesa do restaurante do Hotel Mark, em menu do estrelado chef Jean-Georges — não com a folha, mas um de seus segredos, a semente.
Entre os embutidos, a planta é usada na clássica mas sempre vigorosa relação que os italianos estabeleceram entre o porco e o finocchio, que é como conhecem a erva. O resultado está em um prato intenso no restaurante A Voce: uma bruschetta com ovo, funcho e ‘nduja (assim mesmo, com apóstofro), palavra calabresa para um tipo de salame muito picante.
O funcho dos chefs faz pendant também com as aves, uma delas, ícone entre os pratos da cidade, o frango com gosto de galeto dos bons, do restaurante Jean-Georges, no Trump Hotel Central Park. E marca ainda o pato do Eleven e o pombo do Atera.
Entre os legumes, o funcho, também chamado no Brasil de erva-doce, dá complexidade a uma sugestão aparentemente simples, posto que fresquíssima: a sopa de pepino do Café Boulud. Mas o mar parece ser o destino da erva, mediterrânea de nascença.
Entre os crustáceos, cumpriu sua faceta de hortaliça e esteve em duas saladas: a de caranguejo, do Marea, e a de lagostas, do Rouge Tomate. Entre os peixes, deu suas notas delicadas e levemente adocicadas, ao atum yellowfin do Le Bernardin e ao linguado do Chef’s Table, no Brooklyn Fare.
Em todos os casos, a erva é tratada com respeito e parcimônia — tanta, às vezes, que o perfume já basta. Afinal, mastigar uma raspa maior de funcho, que é cortado somente na raiz, às vezes na folha e, raramente, no talo, é uma experiência até medicinal, mas pode arruinar a receita.
No Rio, a erva, as folhas, as flores e o talo perfumam os badejos do Fasano al Mare, em Ipanema. No Laguiole, no Centro, Ricardo Lepeyre surpreende: emprega o ingrediente em uma torta de sobremesa. Uso igualmente delicado está no risoto de camarão do Vieira Souto, em Ipanema. Ou nas criações de Erik Nako, na Prima Bruscheteria, no Leblon. Afinal, se o funcho é um ingrediente internacional, tem seu lugar também no Rio. “Acho floral, complexo, doce, crocante e refrescante. Gosto muito”, vibra o chef carioca Felipe Bronze, do restaurante Oro, quando o tema é o funcho.
O funcho gira o mundo. Dá frescor a curries indianos, perfuma os embutidos italianos. O funcho gira o tempo: deu aroma aos vinhos de Apicius, desenvolveu-se no jardim do presidente Thomas Jefferson, iniciou-se na cozinha moderna, com as caças de Alain Ducasse, e na contemporânea, quando virou um tempura de Ferran Adrià.
Citar o um presidente dos Estados Unidos quase dois séculos depois faz sentido para a história do funcho em Nova York. Com o fim do mandato, ele, intelectual, músico e jardineiro, recebeu uma leva de funchos do cônsul americano na Itália. “O funcho está além de todos os legumes, e o consumo cru, com sal, para uma experiência superior no reino das plantas”, dizia o bilhete com a recomendação diplomática. Cru, não com sal, mas com um parmesão nobre e uma leve passada no forno é a recomendação do gourmet carioca Luiz Carlos Ritter.
Mas o caminho do ingrediente também segue a lógica migratória para Nova York: o funcho selvagem, que os toscanos idolatram como o finocchio, é onipresente, cultural, quase religioso, na composição dos embutidos finos. “É uma erva que dá um frescor que funciona bem com o que é leve ou, no caso dos embutidos, o que é pesado”, comenta Nicola Massa, jornalista italiano e um dos jurados do guia “Gambero Rosso”. Entre toscanos e americanos, está a Ilha da Madeira. Sua capital, Funchal, não tem esse nome à toa.