O design das massas

[28 jan 2014 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

 

Dos metros de spaghetto de parmesano, de Ferran Adrià (Foto: Francesc Guillaumet)

Das mãos das nonnas às pranchetas dos engenheiros,

surge um novo desenho em um dos paraísos dos gourmets

(Pedro Mello e Souza, especial para a revista Magazine 50)

 

Em 1987, no auge de sua badalação, o arquiteto Philippe Starck recebeu uma encomenda inesperada das massas Panzani, francesa, a maior do gênero fora da Itália. O pedido, um formato diferente, que levasse os traços contemporâneos para o prato, mas mantendo sempre aquilo que as pastas tradicionais têm de melhor: a textura, o paladar e a capacidade de reter os molhos. Mas isso não era exatamente uma novidade na época. Dois anos antes, um designer da indústria automobilística, Giorgetto Giugiaro, era chamado pela Barilla para desenvolver uma massa para a sua linha mais chique, a Voiello.

 

Como todas as obras de arte, o lançamento mereceu um vernissage, além de, claro, jantares badalados, para celebrar tanto o paladar daquela massa em forma de folha curva – e mais o sucesso do primeiro projeto gourmet de um engenheiro que assinara nada menos do que o BMW M1, o Maserati Bora e o DeTomaso Mangusta, carros-conceito para a Audi, a Ferrari e a Lamborghini e, por fim, um dos ícones americanos, o DeLorean, carro que estrelou o filme De volta ao futuro.

 

Projeto para Marille, de Giorgetto Giugiaro, em 1983

Mas o desenho requintado das novas massas tem pouco de ficção e muito de científico. Por trás de todas essas criações lúdicas um ingrediente que poucos percebem na imagem sempre campestre de uma massa: a tecnologia. Em trabalhos como os de Starck e Giugiaro, a mão das nonnas foram substituídas por lapiseiras e pranchetas; as mesas enfarinhadas deram o lugar aos computadores; os rolos de madeira transformaram-se em diagramas de um poderoso programa de 3D. Tempo de preparo: meses. No caso da Barilla, anos. Em ambos os casos, desenhos tridimensionais, de efeitos visuais espetaculares, que deram certo como todas as boas ações de marketing à mesa.

 

Todos os espaguetes são massas? Nem sempre. Prova disso é a onda da benvinda tendência de valorização dos produtos brasileiros. Chefs como Alex Atala, em São Paulo, e Ludmilla Soeiro, no Rio, transformam produtos como o palmito pupunha em fios delicados, que, para o olhar desavisado, pode passar perfeitamente por uma das longas massas das cantinas italianas. Mas o paladar dá outra dimensão ao prato, com os travos da planta servidos sempre em molhos delicados como os de manteiga, na fórmula do paulistano, ou de raiz-forte, como na sugestão da carioca. Mas a onda do preparo de pratos reproduzindo massas já tinha história. Em 2001, Ferran Adrià já abria essa onda invertendo tudo, Começou com um molho à carbonara, que preparou, esfriou, formou-o em longas folhas de gelatina e… cortou-a em forma de espaguete.

 

O projeto gráfico de um saccottini, no livro Pasta by Design

ABC das massas: da abbotta ao zugolotti

 

Afinal, quantos desenhos diferentes de massa existem somente na Itália. Muitos livros tentam fazer essa conta, mas poucos chegam à dura conclusão: ninguém sabe – e, pior, o número só aumenta. Há muitos livros que fazem contas, mas poucos chegam a uma ordem de grandeza. O Encyclopedia of Pasta relaciona 310 tipos de massas, diferentes de si pelos ingredientes e, principalmente, pelo desenho. Em cada um deles, a multiplicação dos formatos, com as incontáveis variações regionais, levou ao desespero a autora do livro, Oretta Zanini de Vita, que foi enfática em relação à pesquisa: “a rigor, é impossível compilar um pastario completo, pois a cada momento estamos diante de uma referência ou pesquisa diferente”, diz.

 

Mas mesmo os desenhos que parecem mais sofisticados hoje têm a sua história antiga: em 1859, o compêndio italiano Vocabolario Domestico, do linguista Giacinto Carena já relacionava uma série de massinhas (pastine, no original) que já mostravam a destreza dos artesãos em sair das massas longas para as suas variedades mais lúdicas, mas com um toque de arte. Um dos formatos em destaque na obra acaba de voltar à moda: o risoni, que simula a forma dos grãos de arroz. Se estrelinhas (stelline), cuoricini (corações) e campenellini (sininhos) também estavam na lista é porque sua existência era bem anterior à pesquisa de Carena.

 

Diagrama do formato das massas no livro Geometry of Pasta

Da mesma forma,, nhoques, raviolis e tortelines são ainda mais antigos e estão minuciosamente explicados na primeira edição do Dizionario della Accademia di Crusca, da Florença de 1612. Ali estão ilustrados também outras formas que se julgavam modernas, como os fusili (parafuso) e os farfalle (gravata), que, provam os estudos arqueológicos, já eram iguarias levadas pelos árabes antes e durante a ocupação da Sicília. Curtas, longas, recheadas ou em formatos, o certo é que as massas italianas tiveram uma origem comum à de outras duas especialidades bem italianas: o pão e a pizza.

 

Entre gregos e etruscos, era comum comer o que estava à disposição: farinha, água e o que houvesse para acompanhar a pobre dieta, como azeitonas, peixes secos e queijos rudimentares e salgados. Aquecidos sobre pedras, assumiram formas finas, esticadasque eram conhecidas como “laganon”, precursora na forma e na etimologia da palavra lasanha. Virá-las sobre recheios ou enrolá-las e passar por fios finos que as transformaram nos primeiros espaguetes foram um exercício de quebra de rotina e de um primeiro passo para o design de massas que vão de A a Z, como a abbotta e o zugolotti – e que desmascaram, como mostram textos genoveses do século 9 e as paredes de Pompéia, as lendas em torno de um improvável Marco Polo.

 

Projeto de Philippe Starck para a francesa Panzani

 

 

 


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