Os cenários parecem montados: é uma bruma que parece não se dissipar da primavera, que dá atmosferas a tudo o que o Chianti tem de legado: sua arquitetura, sua história, sua arte, seus copos e seus pratos. É uma região que mostra o que a Itália tem de diferente dos demais países europeus: apesar de toda a grandiosidade de quem tem uma Roma como capital, cada região tem a sua individualidade, seu encanto e seu caráter, como se fossem nações à parte. Como na França, um país, vários “pays”.
Na abertura do filme Quantum of Solace, a primeira briga do agente secreto James Bond acontece em uma igreja centenária de Siena, no coração do Chianti. Enquanto lá fora acontece o evento mais importante da cidade, o Palio, uma corrida de cavalos sem cela, tão medieval quanto as construções, o nosso 007 trata de arruinar a reforma do campanário que serve como locação. Mas a estrutura é sólida, em pedras e amálgamas que marcam todas as paisagens do interior da Toscana, tanto as externas quanto as internas. E é com esse tipo de pano de fundo que o visitante convive em cada passo que dá na região.
Esse tipo de arquitetura, que ganha as margens de ruas estreitas, incertas, escorregadias, marca também toda o panorama da região, especialmente no interior: construções antigas e brumas etéreas. As torres altas e os muros sólidos, parte da defesa das cidades contra os inimigos que há muito tempo já estão em paz: esse é o perfil da cidade de San Gimignano. Estaciona-se do lado de fora – só os moradores circulam de carro.
Mas chega-se rapidamente ao alto da cidade, após o desfile pela via principal e sua galeria de cafés e lojas de souvenires, pontos famosos para os sorvetes, deliciosos mesmo no frio, e casas de salumerias (presuntos, salames e outros frios) que ostentam, sempre, orgulhosamente, a cabeça empalhada de um imenso javali.
Aliás quase todas as lojas ganham a sua cabeça de javali. Até as farmácias. Com tempo, vale a pena investir em uma alegoria da cidade: o Museo dela Tortura. Não um, mas vários, que, com os instrumentos de persuasão da era sombria das inquisições, tornam-se uma parada com o melhor do kitsch e numa divertida versão local dos museus de cera.
Na saída da cidade, a paisagem de sonhos da Toscana está de volta, com florestas de árvores salpicadas de cores diferentes. Isolamento, silêncio, paz. Até os telefones tocam mais baixo. Essas são as sensações de quando se chega a um dos polos de encontro entre história e tradição, arte e vinho, a cidade de Gaiola del Chiani. É onde estão as sedes de alguns dos mais importantes rótulos do mundo, entre eles o Castello di Ama.
Ali, o casal Lorenza Sebasti e Marco Pallanti usam os vinhedos como pano de fundo de um autêntico museu ao ar livre. São estruturas abstratas, dentro e fora das adegas, com instalações que contrastam tanto com a imensidão dos vinhos quanto com os interiores das adegas, em que instalações modernas convivem com estruturas preservadas, testemunhas da história do (bom) vinho de Chianti.
Na paisagem do vinhedo, o destaque maior não é aparente. Olha-se o futuro brotando de vinhas antigas, cultivadas de forma a virar a história do vinho Chianti, antes conhecido pelas garrafas em forma de ampola e base de palha. Tempos idos, a sangiovese, uva maior da área, ganha nos novos rótulos a grandeza de um Bordeaux: complexos, perfumados, equilibrados e tal como as riquezas e tradições do solo em que crescem, estruturados e longevos.
Dos mesmos terraços em que as aprecia esse processo, é possível ver as torres de Siena, ao longe, mas o novo destino já aparece nas mensagens de beira de estrada: Colli de Val d’Ensa. É uma cidade pequena, pacata, simples, muito bem preservada e conservada. Mas ali brilha uma estrela. Duas, aliás, as do restaurante Arnolfo. A menção ao restaurante não é gratuita.
Tanto quanto um país de vinhos, o Chianti é uma nação gastronômica, origem e berço de alguns dos produtos mais cobiçados da Itália, do panforte ao porco Cinta Senese, ambos celebrados, reconhecidos e protegidos com as severas denominações de origem da União Européia. é o tributo de um “pays” em que se viaja sentado o tempo todo, no carro e, principalmente, à mesa.