Modo de usar: Azumi

[24 mar 2016 | Pedro Mello e Souza | Um comentário ]
Yin brigando com yang, na série sazonal dos polvinhos do Azumi (Foto Pedro Mello e Souza)

Yin brigando com yang, na série sazonal dos polvinhos do Azumi (Foto Pedro Mello e Souza)

 

Abaixo, um guia bem humorado de como usar o Azumi, através de itens ainda pouco conhecidos, como ankimo, karasumi, myoga e shishito, e outros hoje consagrados, como o usuzukuri e o yakitori, que, ao longo dos anos, conheci lá. É uma relação de dicas para que o cliente saia da sua própria zona de conforto e prefira um japonês à brasileira do que um califórnia à americana. Não está em ordem alfabética, mas em desordem analítica, observando um pouco de como se desenrola um omakase comandado pela Alissa Ohara e pelo Manabu San.

 

ANKIMO

De 鮟肝. Fígado de tamboril, que os japoneses tratam e cultuam como “o foie gras dos mares” – no país, ‘kimo’ fígado e coragem são sinônimos. Os experimentados relatam uma textura sedosa, semelhante ao do fígado de vitela, mas de sabor menos intenso. Seu preparo exige pouco esforço, além de uma marinada em saquê e mirin, limpeza das veias e enrolamento em plástico ou papel de alumínio, antes de ir à fervura – similar ao tratamento que o foie gras recebe no Ocidente, aliás. Pronta, é fatiada e servida como um finíssimo petisco, com molhos como o ‘ponzu’ e uma salpicada de ovas de peixe. No varejo, o pacote de 300 gramas sai por cerca de 20 dólares.

 

Seria o ankimo o foie gras japonês? (Foto Pedro Mello e Souza)

Seria o ankimo o foie gras japonês? (Foto Pedro Mello e Souza)

 

SHISHITO

Pimenta recheada com pimenta. Que tal? A maior, verde, longa como um quiabo, é o shishito propriamente dito, com algo de picante e muito daquele toque herbáceo. No recheio, aí sim, o calor da pimenta vermelha, preparada forma que não ataque de cara e, em vez disso, aqueça lentamente até a incandescência que o sadismo do sensei planejar. A palavra, fofa e oxítona, é abreviatura de shishitogarashi, interpretação de 獅子唐辛子, que significa, literalmente, pimenta (‘togarashi’) da cabeça de leão (“shishi”).

 

T - Palavra - Pimentas - Sishito, Jap, Azumi (Foto Pedro Mello e Souza)

Shishito: pimentão japonês com pimenta à japonesa (Foto:Pedro Mello e Souza)

 

KARASUMI

Do hiragana からすみ. Petisco que lembra um brinco tropical, à base de ovas prensadas de tainha ou salmonete, em estilo similar ao da poutargue provençal, da bottarga sarda e ao avgotaraho grego. Como tais, é cortada em tiras finas (o tal brinco) e servidas como ‘tsukemono’, o acompanhamento salgado do saquê.

 

Karasumi: ovas prensadas de tainha, a botarga japonesa (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

GOBO

Interpretação de 牛蒡, ゴボウ ou ごぼう, alcunhas da raiz da ‘bardana’, usada como petisco (cozido, deixa um paladar quase adocicado) ou guarnição de sopas e ensopados de massas. Ou ainda recheio de bolinhos de peixe prensado, conferindo-lhes um toque crocante.


Gobo, que os brasileiros (não) conhecem como bardana (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

MYOGA

茗荷. Conserva de variedade japonesa de gengibre, da qual aproveita-se a flor, que é preparado como tempurá ou como guarnição de massas ou sopas. Sua fama como um tônico para a concentração e outras atividades cerebrais remete a uma lenda sobre certo monge que seguia Buda – era esquecido e o sacerdote o fez usar uma folha da planta com seu próprio nome. A história se prolonga até hoje com a crença de que brotos de myoga costumam surgir ao lado da tumba do cura.


Myoga: brotos de um tipo de gengibre (Foto: Alissa Ohara)

 

KARASHIMENTAIKO

De 辛子明太子, prensado de ovas de bacalhau, condimentadas com pimentas vermelhas e, preferencialmente, o karashi, espécie japonesa de mostarda. Há quem tente prepara-lo aqui no Brasil, mas o mais seguro é apelar para os importados, que são mais saboroso e intensos o suficiente para alcançar o objetivo: nos levar às lágrimas de dor.


Karashimentaiko: ovas de bacalhau picantes (Foto Pedro Mello e Souza)

Karashimentaiko: ovas de bacalhau picantes (Foto Pedro Mello e Souza)

LÍRIO

Schedophilus ovalis, para quem quiser identificar pela cara esse peixe horrendo, beiçudo, de olho esbugalhado ao exagero e pinta de desconfiado como a de quem sempre sofreu bullying dos outros cardumes na escola porque tinha a lancheira do Mickey. Mas no corte, é um dos peixes mais admiráveis das últimas redes que apareceram por aqui. Pudera: é da família do xerelete. Mas tem a carne rosa muito clara, quase marfim, untuosa, rica. Mas é um peixe incidental, raríssimo. Por isso, pergunte sempre, cobre, e choramingue, pois é o caso. Detalhe: é sushi brasileiro – como não tem na Ásia, nem nome japonês ele ganhou.


Karashimentaiko: ovas de bacalhau picantes (Foto Pedro Mello e Souza)

Lírio, peixe exclusivo das costs brasileiras descobrindo seu potencial nas mãos de um bom sushiman (Foto Pedro Mello e Souza)

 

KURAGE (água viva)

De 海月, que significa, literalmente, “lua do mar”. O leitor pode tremer, mas não falamos aqui da temível e medonha criatura gelatinosa, pesadelo dos banhistas tropicais, mas a espécie que se torna uma iguaria nas cozinhas orientais para recondicionamento, quando é seca até o ponto de uma gelatina consistente e, na hora do uso, recondicionada em levíssima fervura e uso em saladas ou sopas. No caso do Azumi, é cortado como uma massa do tipo cabelinho de anjo e colocada sobre um sushi com alga. Delicadíssimo.


Agua viva, na forma do kurage, outra raridade (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

YAKITORI

Hoje, os espetinhos japoneses, os yakitoris (焼鳥) estão em todos os cantos. Até naqueles réchauds baforentos de churrascarias e restaurantes a quilo (uma contradição em termos). Mas nos primeiros tempos do Azumi, ainda eram uma raridade com cara arqueológica e que despertavam reações sociológicas. Uma delas era essa aí, da foto, a de tentáculos de lulas, que a imprensa tratava com a simpatia de quem abriu o crânio de uma galinha pintadinha. E com uma certa razão, até, já que o autor Richard Hosking (A Dictionary of Japanese Food) cita os pardais como uma das especialidades do gênero – hoje em desuso.

 

BUTA KAKUNI

Transcrição original de 豚角煮, que denomina a receita dessa barriga de porco –  sim! porco em restaurante japonês. É cozida em sojas e mirins até a ternura completa. Desmancha-se sob o olhar é suculento, intenso, leve e, creiam neste depoimento: melhor do que o de Monsieur Ducasse. Seu eu fosse chef, me algemaria na cadeira até que a Alissa Ohara entregasse a receita.


Barriga de porco: peça “buta kakuni” (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

UMESHU

Não esse lixo que encontramos por aí, mas o artesanal, preparado pela mãe da Alissa – e também pela própria. O mel não está só na cor, mas também na untuosidade e no paladar generosíssimo que a o “ume”, a ameixa japonesa fermentada, muito ácida, confere à poção, um licor preparado com aguardente. Na garrafa, transmite um sabor de infância, uma lembrança da família da marmelada. Mesmo em seu serviço mais comum, “on the rocks”, a cor alaranjada é linda, atraente, luxuriante, enganadora: quem se empolgar, vai cair – e feio. Por trás da doçura, há um álcool que, em tempos de carnaval, nos invoca outras entidades, como a que nos faz lembrar o Império Serrano de 77, com “O canto da sereia…”. Especialmente depois de umas doses a mais de saquê.

 

Shoju, em receita da família Ohara (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

 

 


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Depoimentos

  1. Carlos Targa disse:

    Muito boa a seleção dos pratos. Só conhecia um ou outro, vou experimentar. Boa Páscoa.