Gabriela e o crivo no cravo

[5 ago 2014 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

Sobremesa no Sawasdee de Ipanema: sorvete de canela e cake de macadâmia (Foto Pedro Mello e Souza)

Cravo, canela e… doce de leite argentino. Gabriela, sua canalha, bonitinha mas ordinária, cumpriu a agenda da moda, de namorar os estrangeiros que vieram pra copa. Marcos Sodré, consider yourself awfully complimented! A casa é uma beleza e dá mais uma escala para quem faz o circuito gastronômico da Rua Barão da Torre, em Ipanema. Mas se há intensidade no comentário, há leveza nos sabores, especialmente no caso do cravo e da canela, que não são ingredientes de base – são especiarias, condimentos.

 

Com o cravo, cuidado redobrado. Uma molécula a mais e o prato estará arruinado. É uma especiaria de travo adocicado mas complexo, obtido pelo secamento da inflorescência seca de certa planta. O nome cravo não vem da flor que Gabriela usava no cabelo, na foto de divulgação da antiga novela da TV Globo. Mas do “prego” rústico, cravos de antigamente. Ao ser localizada pelos navegantes portugueses, no século XV, tornou-se uma das especiarias que tanto disputou-se em mares nunca dantes navegados.

 

Uma das aventuras às quais Camões se referia foi a que levou as caravelas às ilhas Molucas, na Indonésia, provável origem do tempero, que já deixara seu traço no Ceilão e no Canto IX de Os Lusíadas, o primeiro a associá-la à canela:

 

“A seca flor de Banda não ficou;

A noz e o negro cravo, que faz clara

A nova ilha Maluco, co a canela

Com que Ceilão é rica, ilustre e bela”.

 

Mas a primazia lusitana pára por aí: a existência e, mais, a aplicação do cravo, já era conhecida pelos chineses desde o século II a.C. Segundo o pesquisador e (maior da gastronomia) Waverly Root, eles o denominavam “ki she kiang” – língua de pássaro – a o mascavam fresca para dissipar o mau hálito e, só então, se apresentarem diante do imperador. No Ocidente do século IV, a especiaria já era presente do imperador Constantino à Igreja e sua importância como mercadoria foi registrada no compêndio “Topographia Christiana”, do ano de 548, como nos traz James Trager.

 

Os princípios farmacológicos do cravo na região também são desta época, com a exaltação que Paulo de Egina fez à especiaria, nas notas que acompanharam sua tradução de Apício. Em suas observações, como nos traz Toussaint-Samat, o sábio descreve o ingrediente como “carophyllium”, étimo dos futuros ‘clou de girofle’ francês e ‘chiodi di garofano’ dos próprios italianos. São do ano 716 os autos do monastério normando de Corbie, que registram a chegada de um carregamento de duas libras da especiaria.

 

Na virada do primeiro milênio, os mercadores judeus aproveitam-se dos conflitos entre cruzados e muçulmanos e comerciam o cravo em feiras alemãs. Até hoje, o condimento integra receitas cerimoniais das efemérides ligadas à fertilidade e ao solistício de inverno, o futuro Natal. No sul da França e na Itália, o cravo pode ter chegado ao sabor da medicina e no rastro das Cruzadas: teria sido uma das panacéias contra as pestes e, posteriormente, contra problemas digestivos.

 

No sul da Espanha e na Sicília, a rota seria a de mouros e sarracenos e, não por coincidência, uma série de especialidades marroquinas, argelinas e tunisinas são ricas em cravos. Vem desta época a falácia, a furadíssima lenda de que o cravo e outras especiarias serviriam para escamotear o apodrecimento de carnes. De volta aos Descobrimentos, de um deles, o da rota do Cabo da Boa Esperança, Vasco da Gama traz um carregamento de especiarias – entre eles o cravo – que mudaria o mundo.

 

Dois anos depois, o comércio do condimento leva Portugal a um estado de guerra contra os egípcios. As caravelas lusas bloqueiam o Mar Vermelho e iniciam dez anos de conflitos de conseqüências históricas: a queda do preço das especiarias e os cem anos de fama de Portugal.

 

Na cozinha moderna, o cravo é usado para adocicar certos molhos à base de tomate ou cebola, na qual espetam-se alguns dentes, o que permite a transmissão do perfume e facilita a sua retirada posterior, evitando um temerário excesso. Doces como o papo-de-anjo também são exemplos de confeitos cravejados para adquirir a mesma essência que a calda de compotas e a água quente de chás, grogs e quentões liberam. Entre os componentes dessa essência, substâncias como o eugenol, a cariofilina e a vanilina. O aroma do cravo é um dos integrantes dos assentamentos e oferendas a Oxalá.

 

 


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