Coluna de estréia de LETRAS GARRAFAIS, no caderno Rio Show, de O Globo,
que reproduzo aqui a pedidos, para os amigos e leitores de outras cidades,
especialmente as do Sul e de São Paulo.
ATENÇÃO PARA OS PREÇOS, que são os da época da publicação da coluna.
“Ah, mas esse negócio de degustação é muito complicado”. Não é, respondo logo. Afinal, somos um povo que degusta desde a infância. Ainda éramos crianças e já sabíamos exatamente qual guaraná era o melhor, nos dividíamos entre toddys e ovomaltines, sentíamos a diferença nítida entre um picolé e outro e não nos deixávamos enganar quando preparavam, uma gelatina diferente daquela que tínhamos na sobremesa. Quem tem tudo isso na memória, deu o primeiro passo para sentir o vinho como um profissional.
Um exemplo? Certa vez, duas pessoas experientes nos copos tomavam um Nozze d’Oro (Mistral, R$181), um branco à base de inzolia e sauvignon blanc, tão estranho quanto interessante. E provocaram uma terceira, mas que bebia pouco – ou nada – a dizer o que ela achava, na base do “fala o que vier na cabeça”. Ela levou a brincadeira a sério, pegou o copo, cheirou profundamente e não hesitou: “Isso lembra o suspiro da minha avó”. Os outros dois ficaram estupefatos. Se entreolharam, cheiraram seus copos e lá estava aquele aroma quente, o puro suspiro quebradiço, daqueles que acabam de sair do forno.
Isso mostra o quanto a nossa infância pode se revelar diante de um copo de vinho, que a maioria vê como um desafio com medo de passar vergonha. Não é nada disso. Simples ou complexo, caro ou barato, o vinho nos traz sensações de que mal nos lembrávamos.
Um sauvignon blanc chileno, daqueles com boa madeira, como o Loma Larga (Winemais,R$ 140), podem nos levar do sorvete de baunilha até um suco de maracujá que levávamos na lancheira. Quem curtiu jaboticaba no pé, vai reconhecer o estalo da fruta na boca quando provar um tinto siciliano como o Lamùri (Mistral, R$ 129), à base de da uva nero d’avola.
Um syrah, tão típico pelas frutas vermelhas, como um Quinta do Monte d’Oiro (Mistral, R$ 117), da região de Lisboa, pode remeter muitos ao grapete que tomávamos na praia. É um efeito parecido com outro vinho que está chegando ao mercado com o mesmo encanto do suco de infância, o Trebbiolo, da La Stoppa (Piovino, R$66), em que Elena Panteleoni, uma das gênias atuais dos vinhos orgânicos, mistura uvas como o barbera e a bonarda.
Recentemente, acompanhei um casal que abriu um chenin blanc da África do Sul, o Kloof Street (Qualvinho.com.br R$86), fora de série, orgânico, cobiçadíssimo. Enquanto eu e o marido dela nos perdíamos em aromas acadêmicos, ela deu a sentença que nos bateu como um tapa na nuca: “Tô sentindo cheiro de frango assado”. Metidíssimos, eu e ele metemos o nariz na taça e lá estava aquele galeto, daqueles de televisão de cachorro, do puro terroir da padaria.
Na mesma semana, demos de cara com um vinho de sobremesa, um Jerez Antiqua, Pedro Ximenez (Casa Flora, R$ 133), tão concentrado que dá até para tomar de colher. Mas nesse, não teve discussão. Concordamos, como crianças que sempre seremos, que tínhamos ali a mais autêntica lembrança de uma geléia de mocotó.
Enfim, não tínhamos medo. Escolhíamos o que gostávamos sem nenhuma cerimonia – e estamos prontos até para avaliar consistências. Ou não choramingávamos quando o pudim de leite vinha meio mole? Ou, pior, sem furinho? Esses chorões estão prontos para saber quando um vinho tem o corpo da exposição em barris de madeira – ou se manteve só o frescor da fruta. Jogue a primeira rolha quem nunca devolveu a laranjada por que estava ácida demais ou de menos. Bobagem? É questão decisiva, no caso dos vinhos – mas uma solução fácil para nosso paladar, que, mal percebemos, está prontinho para as mais refinadas (e infantis) das degustações.