Duas aulas de gengibre

[11 abr 2015 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

Gengibre suave no bolo de milho com catupiri de cabra e farinha d'agua amarela (Foto: Pedro Mello e Souza)

A primeira aula, essa aí de cima, é do Claudio Freitas, que  levou o frescor do gengibre a uma fórmula improvável, o bolo de milho, mais ainda quando é servido como um dos pratos principais do novo menu sazonal do Bazzar. A  mão leve não permite o que acontece frequentemente: um gengibre invasivo, que, nos casos de exageros, deixam de perfumar e passam a funcionar como lascas de sabonete, deixando de ser um item aromatizante para ser um agente contaminante. Como no caso de Claudio, o condimento deve entrar como um frescor, uma lembrança, como já fazia Apicius, que usava o rizoma para aromatizar sais.Como fez Thomas Keller, na emulsão que cobriu o coelho do Per Se. E como fez Adriá, que o transformou em um aerosol para alegrar seu sushi de navalhas.

Gengibre no Per Se, de Thomas Keller, Nova York, cobrindo o confit de coelho e emulsões de ervilhas e de cenouras (Foto: Pedro Mello e Souza)

A outra aula vem dos livros, da História, sob a qual antecipo meu verbete da Enciclopédia dos Sabores:

 

Gengibre

Zingiber officinale

Palavra que anda no jargão português desde a consolidação da língua, em meados do século 13 para definir o o tempero milenar nas mesas asiáticas e secular nas panelas européias. Trata-se de um rizoma retorcido, cheio de calos mas de casca delicada e carne fibrosa mas suculenta, de aroma adocicado e levemente picante, características que se potencializam quando está em conserva. Alguns autores concordam com a origem nas regiões da Malásia ou da ilha de Sumatra e atribuem sua etimologia ao sânscrito “srngaveran”, que teria gerado o prakrit “singabera”, o grego ζιγγίβερι (“ziggiberi”) e o latim “zinziberi”.Outros consideram a interferência direta do malaio “inchi-ver”.

 

Antes que se tornasse, junto com a pimenta-do-reino, um dos elementos da rota das especiarias, o gengibre já perfumava a dieta oriental, dando aroma a embutidos tailandeses, integrando os curries e chutneys hindus e transmitindo personalidade aos peixes indonésios e seus molhos de coco. Curiosamente, os birmaneses preferem peixe de rio. Por isso, usam o ingrediente para atenuar o sabor característico dos peixes marinhos. Até hoje, o gengibre é componente obrigatório em centenas de receitas de carne ou frutos do mar, doces e até chás da China, que disseminou o gengibre aos seus satélites – Mongólia, Coréia e Japão.

 

O ‘beni shoga’, rosa-salmão, e o ‘gari’, amarelo, ambas conservas de gengibre cortada em lâminas finas, guarnece os combinados de sushi em todos os restaurantes japoneses do mundo. A presença do rizoma nas mesas e ‘mezze’ do Oriente Médio é abençoada pela menção do Alcorão a uma “fonte de águas de gengibres”. E foi na mesma região, pelo mercado sírio de Palmyra, onde gregos e romanos negociavam seus vinhos e seus vidros, no século I, que a especiaria chegou ao ocidente e alimentou o desejo de ostentação nos banquetes abastados dos negociantes e membros do Senatus Populus.


Clássico de Ferran Adriá no original: niguiri de navajas con spray de jengibre (Foto: Francesc Guillaumet)

Mas as propriedades terapêuticas, inclusive as digestivas, já eram destacadas por Plínio, o Velho, enquanto as aplicações culinárias foram estabelecidas por Apicius, que usava o rizoma para aromatizar sais. Para a maioria das referências, a presença do gengibre cairia facilmente junto com o Império Romano, não fosse a pesquisa de Waverly Root, que provou o contrário, ao mostrar a ascensão do tempero pelo trânsito e as sucessivas quedas de preço da mercadoria no comércio com os ingleses. Longe da decadência sugerida, o gengibre atingiria o estrelato sob o reinado da Rainha Elisabete I, que teria entrado na história da gastronomia com a encomenda de uma fornada de biscoitos com aroma de gengibre e na forma dos membros da família real, criando assim o popular ‘gingerbread’.

 

O estabelecimento ‘by appointment” valeu à especiaria a duas rotas importantes de expansão: para a América, onde os peregrinos usavam os biscoitos de gengibre até como arma de sensibilização eleitoral, e para a Austrália, hoje o maior importador mundial de gengibre. O “ginger ale” inglês e o “ginger beer” americano são duas criações que antecederam a moderna febre do gengibre na cozinha contemporânea, onde é aplicada indistintamente em sobremesas ou em pratos principais e até combinações de caldos, sopas, sucos e sorvetes. A farmacologia tem no gengibre um remédio de múltiplas aplicações, que vão desde as antitérmicas e depurativas até a tônica hepática e gástrica.

 

Mas o uso excessivo, inclusive aquele estimulado pela deplorável moda do gengibre seco, pode transformá-lo em um tóxico e levar a carências por impedir absorção de ferro e certas vitaminas ou a eliminação de substâncias como a quinina e a anfetamina. Na área das commodities, a FAO contabiliza 1 milhão de toneladas de rizoma de gengibre produzidos anualmente. De cada dez quilos produzidos, nove estão na Ásia e cinco divididos ente Índia e China, os países que mais aplicam o tempero em sua culinária. Entre os expertos, porém, o melhor gengibre do mundo, de perfume mais sofisticado e de pungência mais equilibrada, vem da Jamaica, o que eleva a sua cotação nos mercados americanos e ingleses.

 

A arte do gengibre, em prancha do naturalista alemão Robert Kohler

 

 


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