Essa foi a matéria de capa que encomendei à jornalista Fernanda Menegotto, para a sétima edição da revista EatinOut – há 3 anos, portanto. E mesmo assim a matéria se manteve atual, a não ser por uma ou outra inatualidade, como os novos rumos de Flávia Quaresma. Mas vale pela riqueza de informações, pelas dicas da escritora Chloé Doutre-Roussel e pelas opiniões de alguns entendedores.
Choconews
Mais finos do que nunca, os chocolates comandam a nova onda das degustações
Fernanda Menegotto
A terminologia pode soar bastante familiar aos conhecedores de grandes vinhos e café de qualidade. Mas basta passar os olhos pelas belas vitrines de algumas chocolaterias de São Paulo e do Rio de Janeiro para encontrar barrinhas, trufas e bombons sortidos que esbarram em predicados como terroir, vintage, gourmet, grand-cru – garantias da excelência e da origem controlada dos produtos. São delícias que revelam muito mais do que a cor preta ou branca; o sabor amargo ou doce, a textura crocante ou suave. Podem ter gosto amadeirado e floral; aroma de frutas e da mais fresca pimenta rosa plantada em seu jardim. Graças à técnica apurada de especialistas e ao cacau selecionado nas melhores plantações da Ásia, América do Sul, Oceania e África, chocolate de boutique é produzido e também apreciado em território nacional. Uma viagem de sabores que não precisa mais tirar passaporte.
Quando chegou ao Brasil 12 anos atrás, o chef patissier Fabrice Le Nud enfrentava a resistência da maioria de seus clientes para degustar barrinhas com alta concentração de cacau. “A maior parte da população brasileira gosta mesmo de tudo com muito açúcar. Então, boa parte de quem chegava à loja queria saber de chocolate ao leite, sem se preocupar com origem e, tampouco, com a composição do chocolate”, conta o premiado francês, que escolheu os jardins paulistanos e, depois, o Morumbi para criar a patisserie Douce France e vender seus doces quitutes. Os chocolates confeitados à base da melhor matéria-prima belga, como o “Callebaut”, e francesa, como a “Valhrona”, conquistaram os consumidores. Em dez anos de atividade na capital paulista, o chef que já trabalhou ao lado de Paul Bocuse presenciou uma mudança sensível de hábitos. “É nítida a migração de paladar dos clientes. Muitos saíram do chocolate branco ou ao leite para o amargo e meio-amargo. Não se pode mais tomar como regra aquela brincadeira de que chocolate branco é para criança, ao leite para as mulheres, e amargo para os homens”. Le Nud reconhece o trabalho de seus colegas chocolateiros no Brasil e elogia o aperfeiçoamento de marcas nacionais. “Houve um grande salto na qualidade”.
A “Chocolat du Jour” também é considerada pioneira no consumo de chocolate de luxo em São Paulo. Apesar de atuar há mais de duas décadas exclusivamente no mercado paulistano, formou gerações de apreciadores em todo o país e também no exterior. “Temos clientes que compram um, dois bombons e não resistem a devorar tudo ali mesmo na loja”, conta a empresária Patrícia Landmann. Os produtos divertidos da marca, como a galinha de ovos de chocolate, garantem uma clientela exigente desde cedo. “As crianças adoram nossas novidades lúdicas. É muito bacana fazer parte de um universo tão democrático e convidativo. Só de olhar você ficar morrendo de vontade. E mesmo sendo um produto de luxo, somos acessíveis. Nem que seja para comer um só bombonzinho”, afirma. Entre as delícias já consagradas, a exemplo das truffes du Jour, a loja apostou na linha “Chocolate Tutti-Frutti” – uma combinação de maçã desidratada, morango ou macadâmia mergulhados no mais puro chocolate. Questionada sobre a composição dos blends da “Chocolat du Jour”, Patrícia fez mistério. Mas revelou que, em breve, deve lançar um chocolate inédito, 100% brasileiro – das amêndoas de cacau aos tabletes.
O sonho de desenvolver um chocolate próprio é compartilhado pela chef e chocólatra assumida Samantha Aquim. Responsável pelo sucesso dos chocolates da patisserie da família no Rio de Janeiro – o Aquim – ela tem um plano ambicioso. “Desde minha visita às fazendas de cacau da Bahia estou obstinada com essa idéia. Comecei uma grande pesquisa de aromas e hoje já tenho um acervo com mais de 100 tipos de chocolates catalogados”. Samantha diz não ter pressa, mas espera contar com algumas mudanças no mercado nacional. “É um desejo que depende do amadurecimento do mercado de chocolate através, por exemplo, de ofertas de equipamentos de processamento de menor porte e produção de cacau fino em maior escala. Existem alguns trabalhos fortes nessa área e tento acompanhar de perto movimentação do setor”. A Bahia conquista, aos poucos, uma posição mundial importante na produção de cacau fino – entre países como Venezuela; Java, na Indonésia e Madagascar. Até 1986, o estado tornava o Brasil o segundo maior exportador da matéria-prima no mundo. Mas uma epidemia de vassoura de bruxa destruiu todas as plantações e legou ao país apenas 5% deste mercado.
AOC – Chocolates de Origem Controlada
Os chocolates de origem controlada – os AOC – se transformaram em uma febre recente entre os cariocas. A chef do bistrô “Carême”, Flávia Quaresma, revela que a clientela tem mostrado muito interesse em conhecer as características e propriedades de trufas e sobremesas. Algo inédito até o passado recente. “Tempos atrás eu não revelava que o chocolate era amargo, ou a 70%. Chegava a mentir. Havia um forte preconceito. Agora, todo mundo quer saber sobre tudo. E comemora se estiver comendo um amargo. Adoram”, conta Flávia, que se divertiu, dia desses, com o comentário espirituoso de uma de suas jovens alunas. “Flávia, acho que há um ano não gasto dinheiro com chocolate de má-qualidade”, revelou à professora, que sempre faz campanha pelo melhor produto.
A chef carioca faz parte de uma tribo particular de apreciadores de chocolates: aqueles que adoram os chocolateiros de grand-cru, mas que começam a se render à produção brasileira. É o caso da jornalista Ticiana Azevedo. Ela admite ser, atualmente, assídua consumidora das barrinhas de chocolate do “Aquim” e do sorvete de chocolate “Valrhona” da “Envídia”, outro charmoso ateliê que só trabalha com matéria-prima de primeira linha. Ainda assim, ela entrega o vício adquirido nas longas temporadas pela Europa: tem preferência por marcas francesas como a “Pralus” e “Michel Cluizel”, listadas entre as melhores do mundo. Visitas frequentes a feiras e festivais de chocolate a inspiraram a elaborar um grandioso projeto para divulgar essa paixão sem fronteiras. Ticiana espera apresentá-lo no Brasil até o fim deste semestre.
Uma paixão brasileira?
Chocólatras e apreciadores moderados ainda têm muito a aprender, a despeito do aprimoramento do paladar. “O consumidor está, sim, mais criterioso e seletivo. Só que ainda é preciso entender o que significa percentual de cacau e poder avaliar sua intensidade. A partir daí poderemos comparar as variações na origem da amêndoa e desfrutar dos chamados chocolates AOC, com apelação de origem controlada. Esse é um longo caminho até surgirem avaliações consistentes sobre diferentes tratamentos de cada amêndoa e o reflexo nas notas aromáticas do chocolate. É um processo de aprendizado organoléptico, como aconteceu no mundo do vinho”, avalia Samantha Aquim.
Um dos maiores desafios, pondera Fabrice Le Nud, é desmistificar alguns conceitos. Para o patissier, as meias-verdades permeiam o mundo do chocolate – a começar pelo entendimento de que basta ter alta concentração de cacau para ser bom. “O consumidor tem que aprender a ler o rótulo. Muitas vezes existe, sim, um grande percentual de cacau, mas a mistura é terrível. Chocolate bom, segundo nós artesãos, contém apenas manteiga de cacau, pouco açúcar e pouca lecitina. Não deve ter muitas substâncias em sua composição, como gordura hidrogenada e óleo de soja”, ensina. Um outro mito, segundo o chef francês: chocolate ao leite tem qualidade inferior ao chocolate amargo. “O chocolate ao leite pode ter uma mistura incrível, com alta concentração de excelente cacau e um leite em pó de grande qualidade”. Assim como a maioria dos brasileiros, ele também faz parte da comunidade que ama os “ao leite”. “Eu adoro. Aliás, não existe essa de amargo ser melhor ou pior. Eu aprecio é a qualidade. O prazer de comer bem”.
O chocolate evoca não apenas bem-estar, mas as nossas belas memórias. Chloé Doutre-Roussel é considerada uma autoridade mundial quando o assunto é chocolate. Durante anos gerenciou a escolha desses produtos para uma das mais refinadas lojas de departamento de Londres – a “Fortnum & Mason”. Hoje, consultora prestigiada, ela ensina a comprar e a degustar chocolate. Sem esquecer as emoções associadas a ele. No livro “The Chocolate Connassaieur” (Editora Piatkus), ela confidencia: “Sempre que eu questiono alguém sobre o chocolate favorito, eu vejo olhos e rosto se iluminarem. Eu sei que essa minha simples questão transportou meu interlocutor para um dia feliz, de memórias felizes de chocolates. Eu sei pela expressão do rosto que ele ama ou não chocolate”.
Os 5 mandamentos para Chloé Doutre-Roussel,
Do livro “The Chocolate Connaisseur”
Use seus olhos. Observe atentamente o pedaço de chocolate escolhido. A superfície deve ser macia e brilhante, um indicativo de que a manteiga de cacau foi corretamente temperada. Não se apegue à cor, que pode variar conforme o tipo de leite e cacau empregados.
Toque o chocolate. É crocante? Granulado? Liso? Quanto mais suave a superfície, mas cremoso deve se revelar em sua boca.
Escute. Ouça como o chocolate se quebra, perceba o chamado snap. Uma peça que se quebra sem muito esforço mostra que há um equilíbrio perfeito de cacau e manteiga. Em geral o chocolate amargo quebra mais facilmente que o ao leite.
Sinta o perfume. Sabor é 90% o olfato. Você deve perceber isso ao pegar um resfriado: o gosto da comida fica muito mais tímido.
Prove. Ao experimentar um chocolate novo, pegue apenas um pedacinho. Bote em sua língua e masque até quebrá-lo em pequenas partes. Então, pare por alguns segundos para deixar o chocolate derreter na boca – assim verá que todas notas e características serão percebidas. Esteja certo de que a mistura se espalhou pela boca inteira – assim sentirá o sabor mais intensamente.
Sabedoria de apreciadores & entendedores…
“O melhor acompanhamento para degustar chocolate é água. E se for provar mais pedaços, vá do ao leite ao mais amargo. Só feche os olhos para senti-lo depois de observar bem a textura do que você escolheu”. (Fabrice Le Nud)
“É a boca quem decide qual o chocolate é bom. Quando há gordura, você percebe que ela preenche os espaços de uma forma estranha, errada. (Flávia Quaresma)
“Chocolate é muito suscetível ao seu humor. Há dias em que você precisa de um “ao leite”, noutros o corpo pede algo menos doce, um “amargo”. (Patrícia Landmann, Chocolat du Jour)
“Sou chocólatra assumidérrima. Para diminuir a tentação durante o trabalho, mantenho um estoque alto de pasta de dente mentolada. Nada mais efetivo para bloquear a gula do que uma boa sensação de frescor.” (Samantha Aquim)
“Chocolate faz bem à saúde, tem propriedades anti-oxidantes. Mas é preciso consumir, claro, com moderação. Segundo estudos recentes, é possível consumir sem prejuízos ao organismo entre 50 a 70 gramas por dia, da mesma forma que vinho. Diminui o colesterol LDL e abaixa o colesterol real. Não passar de 100 gramas. O chocolate pode se tornar um grande vilão da boa saúde (Daniel Magnoni, cardiologista e nutrólogo do Hospital do Coração)
Adorei a aula!