A língua das carnes

[8 jan 2015 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

 

“A superfície é dourada e se mantém crepitante; a lâmina da faca desce fácil e suave; e o paladar invade a boca, em um complexo de texturas finas, de suculência perfumada e de aromas e sabores intensos e elegantes. Já na primeira garfada, o comensal pára por alguns segundos e fecha os olhos. E reabre rápido, ávido pelo segundo bocado de um autêntico ícone culinário”. Esta é uma experiência descrita por um gourmet experiente, diante de um “tapa de cuadril”, uma das formas dos argentinos se referirem à picanha. .

 

Como traduzir uma picanha para um turista? Não tem como. Eles não têm isso. Picanha, só aqui. E não importa se ele é um vizinho argentino ou uruguaio. Ou um viajante mais distante como um americano ou francês. Seus equivalentes terão um formato totalmente diferente do nosso, inclusive no paladar. O fato é que os cortes de carnes variam de país para país – na Itália, de região para região – e as equivalências são feitas por aproximação, entre os comerciantes. Ou por simpatia, entre os gourmets.

 

É o que se nota com a chegada de uma série de cortes que eram raros ou inexistentes aqui antes da virada do século. Chegaram com as carnes dos pampas, com os matambres de entradas e os anchos do corte principal. Ou dos Estados Unidos, com os prime ribs e, mais recentemente, os rib-eyes. E juntam-se a expressões francas e itálicas, das bavettes aos ossobuccos. Para ententer algumas delas, recorremos à Enciclopédia dos Sabores para mostrar, em qualquer língua, o que é que as carnes têm.

 

Bife ancho de wagyu, do Esplanada Grill (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

OS QUE ESTAMOS CONHECENDO

 

Angus

Raça escocesa de bois de envergadura menor e chifres pequenos, quase ridículos. Mas a tem carne superior e muito pura – foi a menos usada em cruzamentos com outras raças, para evitar desvios de qualidade e de autenticidade. Mas gerou variações como o black e o cobiçado red angus, além do brangus, comum aqui – mas o bra não é de Brasil, como se arvoram os patriotas. É de brâmane, origem da raça zebu.

 

Assado de tira

Originalmente, “asado de tira”, com um S só, como no espanhol portenho descreve o saboroso, rico e intenso  prolongamento daquela seção baixa da costela, cortada na transveral, que costuma ser assada lentamente. No ser humano, é encontrada ao longo de onde caem os braços, onde costumamos sentir cócegas. É vizinho do prime rib, de quem herdou a sua vocação de churrasco suculento, de carne presa ao osso, tesouro de qualquer gourmet. Originalmente, grafa-se asado, com apenas uma letra S, como prevêm os argentinos, que nos inspiraram. Entre os cortes americanos, chega como os short ribs.

 

Ojo de bife do Arturito, em São Paulo (Foto: Tadeu Brunelli)

Baby beef

Carne de novilho de não mais de doze meses de idade ou 900 libras (408 quilos) de peso. É criado especialmente para o abate nesse nível, para o qual recebe alimentação especial. É uma carne muito tenra e bem mais clara, mas já muito saborosa.

 

Bife ancho

Uma das peças do complexo das costelas. Essas são localizadas no centro da espinha dorsal do boi e são as mais intensas das pelas do tipo ribeye ou chorizo. E as mais cobiçadas pelas grelhas americanas e argentinas.

 

Chorizo

Corte alto do contrafilé, foi o primeiro dos cortes internacionais argetinos a fazer sucesso no Brasil, em fins dos anos 80. É considerado um dos mais suculentos do mundo, principalmente quando maturado. O corte tem até dois centímetros de espessura e, muitas vezes, chega até a mais de meio quilo, dependendo da peça. Deve ir à grelha rápida e quente para que a crosta conserve os sucos que cozinharão o interior da peça.

 

Sashimi de angus, do Pobre Juan e a suavidade digna do corte japonês (Foto: Pedro Mello e Souza)

Entraña

Corte da parte interna da costela do boi, é uma ripa de carne, que, embora rara e saborosíssima, é desprezada nesse momento da glória do filé de costela. É uma peça servida em parrilhas, quase sempre como entrada e com molhos, que, julgo, eu, são desnecessários.

 

Flank steak

É a nossa fraldinha, corte suculento mas de estrutura fibrosa, o que exige que seja sempre mal passada, para garantir textura e umidade. Fora desse ponto, o destino é o lixo, tanto o corte quanto quem o preparou. Mas não procure a palavra ‘fraldinha’ nos didionários. Não está em nenhum deles, nem no Aurélio, nem mesmo no Houaiss, logo ele que era metido a gourmet. Injustiça desatenção que reparamos aqui.

 

Marbled

Inglês para marmorizado, referência à aparência das carnes levemente entremeadas de gordura, que se desenha como os fios que cortam o branco de um mármore. Com o calor, derrete-se gentil e lentamente, amaciando-a e temperando-a por igual. A técnica do marmoreio é aplicada a raças como a ‘angus’ inglesa e a todas as que fornecem a ‘wagyu‘, a caríssima carne japonesa.


Assado de Tira no Esplanada Grill (Foto Pedro Mello e Souza)

Ojo de bife

Versão portenha do ribeye americano e, como tal, refere-se ao miolo mais delicado do corte maior, o prime rib.

 

Prime rib

Poderoso, opulento, suculento e muito saboroso. Esse é o ‘prime rib’, um dos mais nobres, suculentos e saborosos cortes que americanos e ingleses possam colher de seus gados bovinos. É peça para grelhados por excelência e o belo desenho que proporciona, quando preparado ainda com o longo osso da costela, tornou-se o ícone dos cortes de boi no imaginário popular – e a personificação das carnes em todo o universo dos desenhos animados e das histórias em quadrinhos.

 

Rib eye

Nos compêndios, entre eles o Catálogo Brasileiros dos Cortes de Carne, é o file de costela. Na prática, o filé do prime rib mas sem o osso que marca seu desenho. É composto de duas estruturas saborosíssimas. A maior, do contrafilé, e uma menor, a do filé, mais disforme e, por isso, muitas vezes, deixada no prato. Mas é a mais macia e delicada, o “olho” – ou eye – propriamente dito.

 

Ribeye de vitela, bulbo de funcho, do per Se, em Nova York (Foto: Pedro Mello e Souza)

Rindfleisch

Genericamente, alemão para carne de boi, especialmente aquelas do sudoeste e do norte do país, produzidas com variedades de gados ‘friesian’ e ‘holstein’, conhecidas vulgarmente como “vacas holandesas”. Recentemente, as carnes da Baviera ganharam a sua chancela – a primeira do tipo na Alemanha – graças às características de gados da região, como o ‘fleckvieh’ e outras, já em menor grau, como a ‘braunvieh’, a ‘golbvieh’, a ‘pinzgau’ e a ‘murau-werdenfels’, tal como constam do caderno de encargos que norteia a DOP Bayerisches Rindfleisch – Carne da Baviera, reconhecida em março de 2011.

 

Shoulder steak

Corte da omoplata (paleta) do boi ou da vitela. Antes desprezada, vem sendo descoberta pela sua suculência e consistência, que lembram a da fraldinha e da entraña. Quanto menos tempo na grelha, menor a chance de secar e tornar-se uma peça sem gosto e que só fará o cliente mascar até perder o fôlego e a paciência.

 

Shoulder steak do Tragga (Foto: Pedro Mello e Souza)

Skirt steak

É a entraña dos países do Mercosul, muitas vezes confundida com a nossa fraldinha, pois tem corte igualmente irrigado, e de estrutura levemente fibrosa, o que exige que seja sempre mal passada.

 

T-Bone steak

Uma das instituições americanas na área das carnes, é o corte do boi caracterizado pelo osso em T (t-bone) preso ao suculento e delicioso corte de filé de costela e contrafilé, na região correspondente ao short loin. É uma peça que exige tratamento criterioso da chapa ou da grelha: deve ser selado rapidamente para que mantenha sua suculência e o ponto ideal é o mal-passado.

 

Tapa de cuadril

Denominação que a picanha recebe dos ‘hermanos’ para identifica-la exatamente aos brasileiros, já que não é tão popular por lá.

 

Wagyu

Na aparência, lembravam umas esponjas rosas, com ranhuras brancas, que eram dispostas com a delicadeza de um sashimi. Dariam um ótimo papel de parede. Aos poucos, foi chegando a nós em diferentes formatos e densidades de sua gordura, que, cultuadíssima, é entremeada na carne como uma rede em 3D, não com a capa que vemos em picanhas e contrafilés. Eram cortes de cruzamentos diferentes das matrizes japonesas, primeiro com raças australianas e neozelandesas, depois com americanas e, para dar o ar doméstico, as uruguaias, que chegavam com um paladar rico, às vezes intenso demais, quase enjoativo, como no caso das fraldinhas.

 

 


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