VINHOS, O NOVO PECADO DA CARNE
Como diferentes uvas transformam dão nova grandeza a seu churrasco
Pedro Mello e Souza
O outono é uma temporada emblemática para os vinhos. Mais do que isso, é um ícone. E não somente porque é a época das colheitas no hemisfério norte, mas também porque é o momento da chegada dos guias dos vinhos, principalmente os pocket books ingleses, de Oz Clarke e Hugh Johnson. Em ambos, há capítulos dedicados às relações entre os vinhos e a comida – os dois autores entendem como ninguém que tão bom quanto beber bem é ter o que comer bem. E nos ensinam também o quanto os vinhos locais casam bem com as receitas – e, no nosso caso específico, as carnes. Sempre foi assim com os assados lentos de franceses e italianos, com os cordeiros e carnes de caça de australianos e sul-africanos e, recentemente, com as parrilhas e assados de argentinos e uruguaios.
Não por coincidência, muitos dos vinhos que casam bem com as carnes tem um quê de carnudo em seus paladares, o que abre possibilidades tão amplas quanto – a do carpaccio finíssimo ao mais espesso dos ensopados. Outra característica comum nos vinhos, que faz um bem danado às carnes vermelhas é o tanino. Um amacia o outro desde que não se exagere no sal. Fora isso, é consipiração divina nas grelhas.
Outro fator que pode contribuir com a delicadeza da relação entre o vinho e a carne é a medeira. Os tons levemente adocicados que o envelhecimento em carvalhos nos traz combinam com os açúcares que estão nas crostas das carnes grelhadas. Além disso, a carne mais delicada pode dar uma boa base para o vinho que tem ganhou aromas e sabores mais complexos com a idade.
Mas toda conspiração merece sua aura de segredo. Uma delas pode ganhar até contornos de heresia. É a carne com os vinhos brancos. Não se assuste e envolva o sommelier nessa alegre transgressão. Poderá vir um riesling australiano, que faz bonito com a opulência de um bife ancho. Ou, no dia seguinte, com a sua picanha fatiada ainda fria, tente um branco fresco. Ou, como sugere Hugh Johnson, champanhe.
Escolha seu vinho antes de acender a grelha:
Cabernet sauvignon
Para uma uva completa, pratos completos, sejam simples ou complexos. Citamos os taninos acima? Eles estarão presentes para amaciar o prato. A carne requer ervas? Ela estará no copo. Há condimentos? As frutas estarão nos aromas, na boca e, finalmente, na alma, não importam as longitudes. E não precisamos falar somente dos franceses para esse complexo de efeitos. Basta, como sugere o crítico Hugh Johnson, seguir o rastro de todas as grandes regiões vinícolas no Novo Mundo, como África do Sul e Austrália, Chile e Argentina.
Malbec
Se essa uva naturalizou-se argentina, assumiu o seu lado parrilha com dignidade portenha. Corpulento, aromático, herbáceo, dramático e, como todas as carnes que se prezem, musculoso. Mais do que um complemento, é quase um molho servido à parte. É uma uva tão amiga das carnes que se torna até uma companhia indicada para o mais novo fenômeno gourmet das grelhas, o hambúrguer. Especialmente se for de carnes como a picanha ou a fraldinha.
Nebbiolo
Nesse misto de poderes e delicadezas, a combinação indicada é com o assado de carne que é batizado com um dos vinhos emblemáticos dessa uva, o barolo. No caso, o brasato, que cura no próprio vinho, em casamento mais do que consumado.
Pinot noir
Os pinots franceses podem ir bem com carne, mas é bom ir devagar com aqueles cortes que apreciamos mais na grelha, como a picanhas ou os contrafilés de costela, entre eles os prime ribs e ojos de bife. Em vez disso, caem muito melhor, quase complementam, aquelas que são assadas lentamente, como os costelões ou, melhor ainda, aquelas que vão ao forno com molhos – se forem de vinho, melhor ainda.
Sangiovese
A combinação dos vinhos e dos pratos do mesmo terroir tem exemplo adorável com essa uva, quando estamos no Chianti. Ali, guarnece a bistecca allà fiorentina, o maior de todos os bifões, com suas marcas de grelha que marcam a carne com decoração e paladar de brasa. Os steaks em geral são indicações certas de Oz Clarke para outro vinho medalhado à base de sangiovese: os brunellos.
Syrah
O crítico Oz Clarke é categórico em relação a essa uva francesa: “the classic barbecue wine”. E não somente os shiraz de Austrália e Nova Zelândia, que o têm como companhia de seus cordeiros, especialmente quando a uva é combinada com o cabernet sauvignon. Mas também os próprios franceses, pela pancada de corpo e aroma, um vigor, enfim, pelo qual as carnes tanto imploram. E se a chapa quente nos trouxer um steak au poivre, o syrah vai brilhar.
Tannat
Mais um caso em que os taninos acariciam a carne. Nesse caso, todas as que chegam à mesa uruguaia, não somente os bifes de costela (ojo, ancho) que combinam o impacto do crocante externo, a maciez externa e o corpo da gordura, que toma a peça toda. O tannat levanta a carne, a carne levanta o tannat e assim por diante, em um belíssimo balé à mesa.