Panelão americano

[21 mar 2016 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

A cena aconteceu há cinco anos. E lembrava o cenário desconfiado dos antigos filmes de gângsteres, da época da lei seca americana, no melhor estilo da série Boardwalk Empire: dois homens com sacolas grandes e disformes entrando no restaurante, olhos alertas, suspeitando do risco em cada canto. Uma mulher, o contato, os acompanhava, um repórter os aguardava. As sacolas foram para debaixo da mesa. Dela, puxaram duas garrafas sem rótulo, com cara de coquetel molotov. Os copos vieram com o garçom conivente.

 

Quando as tampinhas voaram, iniciou-se um ritual de sociedade secreta. Era uma cerveja artesanal, que descia untuosa, com o colarinho dançando sobre aquele líquido de cor escura como o de um caldo de cana. Os quatro provaram com a reverência que se vê em uma eucaristia. O repórter ficou com aquele olhar parado e, ainda imóvel, perguntou:

 

– Onde vocês conseguiram isso?

 

– No Leblon, respondeu um deles.

 

Não, leitor, não compraram em alguma loja. Fizeram aquela cerveja de corpo magnífico, de doçuras e amargores equilibrados, na cozinha de casa, no panelão. Foram 60 garrafas de uma cerveja em estilo American Pale Ale, em pleno Leblon. O repórter choramingou por duas delas. Fez uma oferta generosa, em dinheiro vivo. Recusaram.

 

Aventuras à parte, essa história mostra que a produção de cervejas artesanais está mais próxima de nós do que imaginamos. Se os vizinhos fazem a própria cerveja, podemos fazer a nossa. Facilidades não faltam, já que kits completos e itens fundamentais como maltes e lúpulos já estão disponíveis. Online, inclusive, com direito a assessorias e tutoriais para cada tipo.

 

Uma das mais importantes IPAs brasileiras, a Colorado Indica, de Ribeirão Preto (Foto Pedro Mello e Souza)

Uma das mais importantes e conhecidas IPAs brasileiras, a Colorado Indica, de Ribeirão Preto (Foto Pedro Mello e Souza)

Para as cervejas artesanais, a exigência é maior, especialmente para o estilo que as especiais dos brasileiras (e do mundo inteiro) mais seguem, o da American I.P.A., de nossos amigos da história acima. Tem algum corpo, muito aroma e um amargor que não é para fracos. Há exemplos fáceis de se encontrar, como as da carta do Aconchego Carioca, com a Maracujipa, da 2Cabeças, e a Mistura Clássica. Ou a da Adega do Pimenta, em que temos a Noi Amara  e a Colorado Indica, de Ribeirão Preto.

 

Muito desse caráter está na seleção dos lúpulos, como o amarillo, americano, um dos mais usados para dar o aroma cítrico característico e algum toque de maracujá. Para quem quer fazer a sua própria tentativa, um pacote de um quilo, na Malte e Cia, sai por R$ 252,85, o que aromatiza, em média 100 litros de cerveja, dependendo do tipo e do amargor. Outro lúpulo desse estilo é o centennial, também americano, normalmente associado ao amarillo, para combinações no melhor estilo do que os produtores de Bordeaux fazem com cabernets e merlots. .

 

Na mesa do Herr Pfeffer, o a neve dourada da Rogue (Foto: Pedro Mello e Souza)

Na mesa do Herr Pfeffer, o a neve dourada da Rogue (Foto: Pedro Mello e Souza)

Enfim, com as facilidades de acesso, as muralhas caíram e estilos como os da American IPA espalham-se como fogo de palha, aqui e em todo o mundo. Com isso, os padrões antigos foram, revistos e recriados. Tínhamos as belgas como as veneráveis. As alemãs, tchecas e holandesas como respeitáveis, as inglesas como as amargas, as americanas como intragáveis – e as brasileiras, tragáveis, desde que estupidamente geladas.

 

Isso mudou. Experimente casos modernos como os da alemã Schneider Tap5 ou da americana Rogue Yellow Snow Indian Pale Ale para ver como as antigas fronteiras dessa volta ao mundo da cevada já estão virando espuma. E como está tranquilizando o produtor artesanal, que já pode degustar a própria cerveja do panelão com os amigos sem passar pelo papel de gângster.

 

 

 

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