Pêra Manca é um vinho multidisciplinar. Envolve histórias de descobrimentos, do Brasil ao Alentejo. Envolve discussões que vão das linhas dos rótulos à arte das falsificações. Envolve o avanço dos vinhos jovens e o lado venerável das velhas uvas. E envolve até as antropologias, das geológicas às linguísticas, com rápidas pinceladas de metafísica: no melhor estilo Dia da Marmota, foi provisão de bordo das caravelas rumo às Índias, mas, a rigor, acaba de completar 30 anos.
Vamos às histórias: quem curte um bom azeite, já viu, na mesa de restaurantes ou nas prateleiras dos supermercados, aquela garrafa curtinha, gordinha, estampada com um tremendo EA no rótulo. São as iniciais de Eugénio de Almeida, mais exatamente de Vasco Maria Eugénio de Almeida, que, com sua fundação, nos anos 1960, tomou a frente da divulgação dos vinhos (e azeites) da cidade alentejana de Évora, que os viajantes conhecem pelo paladar apurado do restaurante Fialho.
Na época, já eram conhecidos pelo Cartuxa um rótulo que, no Brasil, ajudou Portugal a desbravar as cartas de vinhos um espaço que, por tradição, era francês ou italiano. Nos últimos 20 anos, o Cartuxa esteve nas cartas de vinhos de nove entre dez restaurantes portugueses no Brasil. Era um vinho fácil para todos: para o sommelier sugerir, para o comensal aceitar, para o cozinheiro harmonizar e, claro, para o cliente pagar.
Porém, muito antes da chegada do Cartuxa ao Brasil, já era conhecido, ainda na Portugal medieval, o nome Ribeira da Pêra Manca. Mesmo com o acento, a tal “pêra” era pedra, no português arcaico, da mesma forma que o Pero foi um rudimento de Pedro para nosso Vaz de Caminha. Era manca por conta da erosão de um determinado rochedo, que, antes majestoso, perdeu um pouco da pose, mas manteve a fama para batizar o riacho adjacente – e os vinhedos ao redor. Desses vinhedos teriam vindo muitos dos vinhos usados nas rações de bordo das caravelas, inclusive a do próprio Caminha.
Já contei antes aqui todas as agruras que o vinho Alentejo sofreu até chegar ao estrelato atual. Da praga da filoxera às ditaduras políticas, foram séculos de doenças biológicas e humanísticas. E o vinhedo da área da Pêra Manca sucumbiu a todas elas. Ficaram as sementes da fama e da mística, que voltaram a brotar em 1987, quando um dos herdeiros daquelas quebradas concedeu à Fundação Eugênio de Almeida a prerrogativa do uso da marca, e do belo rótulo, impresso, hoje, com a refinada técnica da água-forte. Mas em qual vinho aplicar esse rótulo?
Na linha dos vinhos de entrada, a vinícola produzia os EA brancos e tintos (R$ 65) ou os reservas (R$ 126). Na linha dos Cartuxas, tinham o Colheita e o Reserva (R$ 229 e R$ 398, todos na loja Espírito do Vinho). Mas foi eleito o antigo Cartuxa Garrafeira, maior vinho da Eugênio de Almeida, expoente das velhas (antigas) castas locais, como a trincadeira e aragonês. Para ser rebatizado, foi reestudado, repaginado, replantado. E tornou-se o Pêra Manca de hoje, ressuscitado, reinventado e, hélas, reajustado – onde há tanta fama e mística, há também um preço a ser pago.
Por uma garrafa de Pêra Manca Branco, um vinho português de exceção, no fim de 2017, estava por R$ 350. Pelo tinto, na mesma época, o susto: R$ 1.900. Sim, quase cinco vezes mais do que o branco. Inatingível para nós, mortais, é atraente para os colecionadores com posses. Mas também para os falsificadores. Para combatê-los, a vinícola apelou para a tecnologia e a parceria com a Casa da Moeda de Portugal, que projetou um selo holográfico de autenticidade, para proteger a clientela – e a sobrevivência de um vinho que insiste na tradição rica da vinha alentejana.
Letras garrafais