O lado negro

[17 maio 2011 | Pedro Mello e Souza | 3 comentários ]

Lado negro da gastronomia é saboroso,

atraente e faz bem.


 



Em um dos primeiros capítulos do livro “Gula”, que o crítico gastronômico inglês John Lanchester lançou em 1996, chama a atenção um banquete temático, somente com ingredientes de cor preta. Foram caviares, trufas, vinagres, grãos e sementes torradas – e negras – como o gergelim.

 

A tendência reflete uma das correntes da nutrição, a das cores, elevada à condição de moda pela riqueza dos ingredientes negros e seu sucesso na cozinha contemporânea, como o arroz selvagem e, principalmente, o alho negro. E com a bênção de alguns ramos da cozinha ayurvédica e das crenças na busca do alimento afrodisíaco, em que brilham itens como as trufas e o caviar.

 

Simbolismos e ocultismos à parte, não é difícil relacionar elementos da cozinha em que a cor negra não traga contrastes insinuantes e paladares vibrantes, do tostado ao fermentado. E a pesquisa mais aprofundada vai deixar claro que o preto, não o branco, o vermelho ou qualquer outra cor, está mais presente nas denominações de iguarias, pratos e ingredientes do que qualquer outra.

 

Isabel Thomas é autora de uma dessas pesquisas, publicadas no livro “Black Foods (Colors we eat)”, em que relaciona um rosário de itens da cozinha e seus benefícios, lendários ou comprovados. Entre esses benefícios, a integridade de rins e ossos, o ajuste de funções fisiológicas, o estímulo do sistema endócrino e digestivo e uma ação contra o envelhecimento.

 

Entre as pérolas negras:

 

Alcaçuz – Do árabe ‘arq suus’. Leguminosa de raiz doce, cuja essência serve à confeitaria como substituto do açúcar tanto como adoçante como material para a moldagem de enfeites na confeitaria, conhecidos pela cor negra. Para quem se lembra da cena impagável de Charlie Chaplin devorando uma sola de sapato, em “Corrida do ouro”: não era couro, mas um belo molde em alcaçuz.

 

Alho negro – O ingrediente da moda. Trata-se do alho comum submetido a uma cura sob condições ontroladas, que dão um tom caramelado, quase trufado, a cada grão do bulbo. Tem delicadeza mas aromas de intensidade específica para pequenos luxos como os risotos e o foie gras, inclusive esse aí abaixo.

 

Bazzar: torchon de foie gras ao alho negro

Amora-preta – (Rubus fruticosus) – Pobre denominação que o rico ‘blackberry’ recebe do português, segundo os dicionários oficiais da União Europeia. Além de saborosa, revelou-se um cobiçado manancial de fibras e antioxidantes.

 

Arroz negro (o grão) – (Zizania acquactica) – É o popular ‘arroz selvagem’, sem qualquer relação botânica com o arroz, a não ser pelo grão longilíneo e o modo de preparo. Fora isso, tem superfície negra, brilhante e, mesmo cozido, é levemente resistente ao dente, quase crocante. É um produto raro e sua colheita, na região dos Grandes Lagos, é artesanal, realizada com varas, que golpeiam os ramos altos e jogam os grãos para dentro das canoas que cruzam os alagados onde a planta cresce – a colheita mecânica é proibida. Segundo Câmara Cascudo, etnógrafo brasileiro, algumas variedades desse arroz eram colhidas pelos indígenas brasileiros, mas foram substituídas diante das facilidades do arroz branco.

 

Arroz negro (o prato). Ou ‘arroç negre’, como consta em alguns cardápios locais, ao descrever esta mítica receita de origem valenciana e catalã. Trata-se de uma versão da paella de sépia, um parente da lula. O açafrão da fórmula tradicional é substituído pela tinta negra do molusco, conferindo ao arroz uma cor negra e brilhante. No Algarve, seu similar é o arroz de choquinhos e tinta.

 

Eñe: arroz negro y calamares (Foto: Rogério Voltan)

Azeitona preta. Não uma variedade à parte, mas a própria azeitona verde, que é deixada a amadurecer e maturar por cura ou simples oxigenação. No mercado, são mais suculentas e oleosas e também a base de denominações regionais, entre elas a francesa niçoise ou a grega kalamata, que se valorizam com marinadas de azeites e ervas. E são também a base de especialidades como a tapenade.

 

Bacalhau preto (Gadus macrocephalus). Variedade de bacalhau do Pacífico, que é comercializado fresco, defumado ou seco como o seu congênere do Atlântico. Seu paladar é considerado menos sutil do que aqueles que são salgados ou curados sob ventos europeus.

 

Beurre noir. Francês para “manteiga negra”, referência à aparência escurecida do ingrediente, por queima de seus resíduos de proteínas. É usada pura, enriquecida com ervas como a salsa, para a guarnição de carnes. Ou ainda filtrada e recondicionada, já como manteiga clarificada.

 

Black angus. Uma das variedades da raça de bois desenvolvida na região de Aberdeen, na Escócia, de envergadura menor do que a média, de chifres muito curtos. Sua carne é de tenrura sem igual e é apreciada a peso de ouro em restaurantes europeus e americanos, que a classificam a como uma grife sob a chancela “angus certified”, com direito à certidão numerada, o que contribui com o aumento do seu preço. Apesar de ser uma raça desenvolvida na Escócia, vem sendo criada em outros países como a Argentina, Austrália, África do Sul e Brasil onde integra um ciclo de cruzamentos para gerar a raça brangus.

 

Black beans. A rigor, interpretação do inglês para feijão preto. Mas o mais provável é que a versão se refira à soja fermentada, que gera um grão igualmente negro – e seus subprodutos, entre eles o shoyu.

 

Blackberry, o verdadeiro, antes que as novas gerações se esqueçam dele (Foto: PMS)

Blackberry (Rubus fruticosus). Expressão pela qual os antigos se referiam a uma frutinha silvestre, redonda, negra na aparência, usada em molhos agridoces e recheios de muffins. Isso, antes do aparecimento do famoso aparelho telefônico do mesmo nome, batizado, inicialmente como strawberry – suas teclas lembrariam as sementes de um morango. Mas o CEO da empresa teria preferido blackberry, hoje um sinônimo do lado negro dos telefones.

 

Black-eyed peas (Vigna sinensis). Outro nome que a cultura pop surrupiou da culinária. Originalmente, a expressão refere-se ao feijão do tipo fradinho, base de saladas, matriz do acarajé e que, tal como sugere a denominação, é marcado com um olhinho preto.

 

Blackstrap. Nos receituários antigos, inglês para “melaço”. Nas paradas de sucesso, o nome de uma banda sueca.

 

Blé noir (Fagopyrum esculentum). Francês para “trigo negro”, referência a essa semente que nem cereal é, mas confere cor e paladar aos blinis russos e a uma série de crepes e galetes bretãs e normandas, além de uma família de massas comuns nas culinárias chinesas e japonesas.

 

Boudin noir. Francês para ‘morcela’, embutido de tripas e o sangue do porco, que lhe conferem a cor escura e a textura granulosa.

 

Black eyed peas, nosso feijão fradinho (Foto: Pedro Mello e Souza)

Caviar negro. Denominação que os caviares de esturjão passaram a ganhar depois do advento das ovas de salmão. Refere-se também a uma simulação triste, as ovas pintadas de um peixe horrendo, o lumpfish.

 

Chile negro. Diz-se de pimentas que são deixadas a secar, ganhando cor de um castanho-escuro profundo. É um dos ingredientes fundamentais do ‘mole negro’, ícone mexicano

 

Cocada preta. Diz-se da cocada preparada com os ingredientes tradicionais, mas com o açúcar cozido em ponto de caramelo-escuro. Ou, mais raramente, com açúcar mascavo. Tudo simples, enfim, que justifique a coração de um rei da iguaria.

 

Corvina preta (Pogonias cromis). Ao lado da sardinha, é uma das pescadas mais importantes do litoral brasileiro e chega ao varejo inteiro, quando pode ser assado no forno ou na grelha, ou em filés, quando proporciona boas frituras à milanesa, seja a peça inteira, seja em iscas, como petisco. Diversos peixes com a mesma denominação nadam pelas cozinhas do Atlântico e do Pacífico, especialmente aqueles que fornecem um dos pratos mais emblemáticos do litoral que vai do Peru ao México, o ‘ceviche’.

 

Feijão preto. Um dos vícios da culinária brasileira e base de emblemas da nossa nação gastronômica, especialmente no Sudeste, como a feijoada carioca, o virado à paulista e o tutu à mineira. Mas não é uma exclusividade nossa – é uma presença em todo o círculo das colônias hispânicas, que refletem, hoje, nos moros y cristianos de cubanos e porto-riquenhos. E nos rice and beans, especialidade créole de praticamente todo o sul dos Estados Unidos.

 

Floresta negra. Originalmente, schwarzwaldtorte – ou torta de cerejas da Floresta Negra, referência à região do sul da Alemanha. Sobrepõe camadas de massa de torta e de chocolate, geleia de amoras, cerejas frescas e creme batido com um generoso lance de ‘kirsch’. Uma limalha de chocolate ralado e uma decoração de creme e cerejas arremata a apresentação clássica do veneno.

 

Sorvete de floresta Negra da Mil Frutas (Foto Pedro Mello e Souza)

Galha preta. Jargão de pescadores que chegou aos cardápios, especialmente nos litorais pesqueiros, define uma das nossas variedades de cação. É marcado pela ponta negra de sua barbatana dorsal. Quando bem limpo e bem preparado, torna-se uma iguaria que só que experimentou um “prato-feito” em Búzios pode comprovar.

 

Gergelim torrado – Ingrediente de sabor delicadamente tostado, usado como condimento pelos japoneses e aceito até pelos rigores da nutrição ayurvédica.

 

Kurobuta. Literalmente, “porco escuro”, referência ao manto desta cobiçada raça de suínos, cultivada no sul do Japão.

 

Mole negro. Um dos sete “moles”, molhos emblemáticos da cozinha mexicana. Neste caso, um amálgama com quase uma centena de ingredientes, inclusive o chile negro, que contribui com cor, calor e aroma.

 

 

Nero di sepia – Italiana para tinta de lula, um dos ingredientes mais singulares da cozinha mediterrânea. Confere cor intensa e untuosidade sem igual.

 

Pão preto. Universo de pães ricos em cereais integrais, que se tornaram item obrigatório em sanduíches propostos como saudáveis. No norte da Europa, variedades ainda mais escuras são obtidas por adição de açúcar mascavo.

 

Pata negra. Referência que se faz aos pés escuros de uma série de raças de porcos do sul da Espanha, cuja alimentação, quando à base de bolotas (bellotas) de carvalho enriquece uma carne adocicada e delicadamente entremeada com gordura fina. A falta de critério e de atestados de pureza das peças, que devem ter pelo menos metade de ascendência ibérica, impede o reconhecimento oficial dentro da própria Espanha.

 

Pimenta-preta. Estágio intermediário do preparo da pimenta-do-reino. Neste caso, é o fruto seco da planta Piper nigrum, que pode ter a casca removida para se tornar branca.

 

Porco preto. Raça de porcos alentejanos, únicos recomendados para a produção de iguarias com o reconhecimento da União Europeia, como os presuntos de Barrancos, os paios de Beja, o chouriço de Vinhais e as alheiras de Mirandela,

 

Sal negro. Conhecido também como “sal do Himalaia”, é extraído de minas de sal da imensa cordilheira, que já fora, em outras eras, o fundo de um oceano. A provável ação de lavas ou cinzas conferiram o tom escurecido – às vezes, tendendo para o rosado – desta variedade de sal gourmet.

 

Tapenade. Pasta à base de azeitonas negras, alcaparras (tapeno, em provençal) e anchovas, que são piladas em azeites para guarnecer pães, legumes crus (crudités) e especialidades como a pissaladière.

 

Trufa negra (Tuber melanosporum). A do Périgord, de preferência, de perfume furiosamente defendida pelos franceses como a melhor do mundo, desafiando o consenso em torno das trufas de Alba. A espécie em si é mais comum e pode ser encontrada na Espanha e na própria Itália, onde é conhecida como scorzone. Algumas regiões da Inglaterra e sítios na Tasmânia e Nova Zelândia trombeteiam as suas culturas diante de um mercado cético e ciente de que ninguém jamais conseguiu cultivar trufas com qualidade culinária.

 

 

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Depoimentos

  1. Hortensia disse:

    Meu Deus, Pedro, como você sabe de coisa… Tô besta!

  2. Olá Pedro Melo, amei encontrar você na Net e, meu caro na Arte nada se cria tudo se copia , eu vou faze uma postagem no meu blog com alimentos pretos e vou sitar você como referencia.
    Foi pesquisando a estória do morango preto que cheguei até você. Parabéns e sucesso