Quem tem boca vai a romã

[2 ago 2011 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

Romãs, em foto de Elisa Correia.

 

Dois milênios depois exatamente no Dia de Reis, a romã está de volta à moda, menos por seu paladar refinado e mais pelas conclusões do médico oncologista francês David Khayat, publicadas em seu livro Le vrai régime anticancer, à venda desde o fim de 2011.  A potência da fruta bíblica (e seu suco) como fonte de antioxidantes seria uma das armas mais eficientes da área da alimentação não somente na prevenção do câncer, como também para a cura.

 

Tecnicamente, a romã é uma miséria para o mundo da nutrição: é diurética, pouco calórica e fornece apenas algum teor de vitaminas C e K e certa quantidade de fibras. Indicada, portanto, para dietas hipo-calóricas e paraa satisfazer a fomes noturnas. Potássio, cobre, fósforo e nenhum colesterol completam o coquetel.

 

Mas seu travo azedo já alegrou a mesa – e a sobremesa – dos povos de origem arábica ou semítica, que aplicam seus grãos ou seu suco, puro ou reduzido, a aplicam em molhos acridoces ou lhe extraem as essências para xaropes (o narsharab dos geórgios; o dibs rouman dos libaneses, o robe anaar dos iranianos) ou águas aromáticas, todos próprios para um receituário que se estende do Marrocos ao Paquistão.

 

O nome da fruta é uma adaptação do arábico ‘rumman’. É fruta desprezada pelos ocidentais e cultuada pelos povos do Mediterrâneo, especialmente os de origem árabe, que a preservam como mito de fertilidade, pela quantidade de semente de bela cor púrpura que o fruto aberto expõe.

 

Até hoje, a romã é um dos ingredientes da mesa sefaradita do Rosh Hashanah. E é um dos símbolos da sexualidade feminina em pinturas pós-renascentistas, em alusão ao formato da abertura que sua casca proporciona, quando madura. A publicação do livro “Pardes Rimmonim” (“O Pomar de Romãs”), o fundamento e a ética da cabala, no século 16, imortalizou a fruta na religião judaica, que, segundo Middrash, teria o mesmo número de grãos que o Torah tem de mitzvoh.

 

Essa quantidade de sementes da romã e sua ligação direta com os ritos de fertilidade atiçam até hoje a imaginação dos supersticiosos mais católicos (ou católicos mais supersticiosos, como queira), que se envolvem na coleta e na guarda, ingerem, guardam na carteira, dão pulinhos e uma série de outros adoráveis vexames, na crença de que vai brotar dinheiro na carteira, especialmente no Dia de Reis.

 

Alguns autores atribuem a etimologia ao latim “mala romana”, maçã romana, embora o árabe ‘ruman’ e o farsi ‘rouman’ sejam mais dignos de crédito. O francês grenade denomina tanto a fruta quanto o explosivo, pela relação entre os fragmentos.

 

A própria denominação científica, Punica granatum, justifica esta denominação, assim como no inglês e, em algumas regiões, o espanhol.

 

Objeto de discussão também no campo teológico, a romã (assim como o marmelo) seria o símbolo real do fruto proibido, não a maçã, desconhecida dos semitas dos tempos bíblicos, em que é largamente citada:

 

“Uma terra de trigo, cevada, vinhas, figos e romãs, de azeitonas e mel”, proclama o Deuteronômio, um dos livros da Bíblia mais focados na alimentação. A árvore da fruta deu sombra a Samuel, prova de riqueza em Números – e de perda em Joel -, referência estética em Reis, em Jeremias  e no Êxodo e padrão de beleza nos Cantos de Salomão.

 

Entre os gregos, era um elemento mítico, criado por Zeus a partir do sangue dos ferimentos causados por Dioniso em Agadistis. De volta ao mito da fertilidade, teria sido disseminada por ninguém menos do que a deusa Afrodite, nos pomares do Chipre e do Peloponeso.

 

Neste mesmo panteão, a fruta foi o símbolo de Perséfone, que, durante o rapto que sofreu de Hades, alimentou-se de seis grãos de romã – e foi, por isso, condenada a passar seis meses do ano nas sombras.

 

Na Índia, onde é conhecida como andardhana, a romã é usada em pratos tão diversos quanto um curry de batata ou uma seleção de pães e doces, em todos os casos, transmitindo perfume e um travo azedo. Na esfera ocidental, a romã foi pouco além do paladar dos romanos, que as importavam de Cartago: integrou receitas da época de XIV e foi aconselhada por Alexandre Dumas apenas como elemento decorativo.

 

Recentemente, foi a base do licor granadine, hoje composto mais de frutas vermelhas do que da romã, uma fruta que deixou sua cor na poesia de Shakespeare (“Nightly she sings on yon pomegranate tree”, Romeu e Julieta), na de Elisabeth Barrett (“Or from Browning some “Pomegranate,” which if cut deep down the middle / Shows a heart within blood-tinctured, of a veined humanity”).

 

E na da fotógrafa Elisa Correia, autora da foto esplêndida deste artigo.

 

 


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