Segundo uma lenda urbana, uma série de restaurantes cariocas têm a foto da crítica de gastronomia do jornal O Globo, Luciana Fróes, pendurada na cozinha. Assim, a equipe poderia reconhecê-la e acionar todos os alarmes de eficiência e cortesia em torno da jornalista. “Já ri muito com essa história”, comenta Luciana, que já viu uma dessas fotos penduradas. “Mas ninguém tem medo de mim não. Não precisa, né?”.
Será, Luciana?
Por via das dúvidas, muita gente vai recortar a foto acima. Mas para identificar os seus métodos e critérios de julgamento e até sua rotina, a EatinOut convocou um grupo de chefs e empresários de restaurantes cariocas, que elaborou uma bateria de perguntas à crítica. Nas respostas, a melhor forma de desvendar uma série de mistérios e curiosidades que envolvem seu trabalho e, quem sabe, aplacar um pouco a tensão da sexta-feira, quando todo o mercado da gastronomia carioca abre as páginas de suas colunas, no caderno Rio Show.
(N. do E.: esta entrevista foi publicada em 2008, na revista EatinOut e contou com a participação dos seguintes chefs e empresários: André Cunha Lima, César Hasky, Felipe Bronze, Flávia Quaresma, João Luiz Garcia, Ludmilla Soeiro, Roberta Sudbrack, Rogério Fasano, Samantha Aquim. E eu, que mediei, garanti o sigilo nesse paredão de perguntas além de, claro, dar o meu próprio tiro. Nova versão desse saboroso massacre está sendo preparado, com nova turma de cozinheiros, maitres, sommeliers, proprietários e outros carrascos. PMS)
Como você faz para ter uma isenção entre seu gosto pessoal, até mesmo a sua memória (afetiva) de paladar, e o gosto de seu público leitor?
Gosto é subjetivo, claro. Mas conhecimento é um fato. Como comer é o meu trabalho, acho que levo uma relativa vantagem sobre os clientes normais, conseqüentemente, dos leitores também. Freqüento restaurantes bem mais do que a média, assim como um jornalista de moda vai a mais desfiles, o de música vai a mais shows, a Barbara Heliodora vê mais peças, o Calazans assiste a mais jogos… Enfim, jornalismo especializado requer dedicação integral. E ainda leio sem parar. As editoras mandam para o jornal tudo que publicam sobre comida. E a grande maioria dos chefs quer me mostrar o que anda fazendo. Com isso, o meu “cardápio” é mais encorpado e meu acervo são mais frescos . Mas não sou arrogante e nem dona da verdade. Se sou, não percebo. Tenho anos de jornalismo e aprendi ter os pés no chão. Sempre. Além do mais, torço pela gastronomia da minha cidade. Afinal, sem ela, fico desempregada. O Rio Show é para programar o leitor e não desprogramar. O que eu quero é dar uma dica bacana para quem está lendo a coluna e não sugerir que ele vista o pijama e fique em casa. Acho que tem funcionado. Quando eles não aprovam, me mandam e-mails reclamando. E eu respondo. Com chefs e donos de restaurantes, no caso os “criticados”, idem: eles me escrevem e eu respondo prontamente. Mas todos os meus encontros pessoais pós-critica, digo, ao vivo, foram um desastre. Um deles me convidou para tomar um café da manhã. Achei que era uma cordialidade e aceitei o convite. Lá estava eu, 9h em ponto, no Garcia e Rodrigues. E lá estava ele também, só que de lap-top em punho, com todo o organograma da empresa, as técnicas de higiene, os investimentos, os planos futuros… Achei de inabilidade absoluta.
Existe algum lugar que você tenha uma relação afetiva – memórias da família ou apenas bons momentos – e que por conta dessas memórias você prefira não julgar como crítica?
Sou de um tempo em que a gastronomia na cidade engatinhava. Comer fora era reservado quase sempre para datas especiais, como aniversário. No mais, comia-se em casa. Bebia-se muito fora, mas ainda não tinha essa onda de vinhos. Bebia-se uísque pelos Lunas do Leblon e chopes pelo Bar Luiz. Mas eu ainda não bebia, aliás, incrível, mas não bebo nenhuma das duas bebidas que citei. Minhas lembranças afetivas passam pela mesa da minha casa do Leblon, a comida requintadíssima da minha mãe, lindona e inteira até hoje, aos 80 anos. Ela me ensinou a comer bem, a apreciar os sabores delicados, a elegância das misturas, a importância da apresentação. Tem um lugar especialmente que me toca fundo, que pode parecer esnobismo, e não é. A Pérgula do Copa: foi ali que aprendi a nadar com a minha irmã. E equilibrei o meu primeiro coquetel de camarão servido numa de taça “de salto alto”, como dizia o meu pai nos encorajando a provar aquela mistura cor de rosa. Passei muitos finais de semana da minha infância ali com meus pais, avós e primos. Quando meu pai fez 80 anos, fomos ali comer… coquetel de camarão!
A comida é, depois da língua, a melhor expressão cultural de um povo. Com tantas viagens gastronômicas que você já fez, qual a refeição que melhor expressou algum país que você tenha visitado?
Um das minhas maiores emoções foi jantar no Ritz de Paris, que além daqules pratos lindos, a ambiência deslumbrante, o que eu estava li saboreando tinha sido feito na cozinha onde trabalhou o mestre Auguste Escoffier, “o rei dos chefs e o chef dos reis”. Não é o máximo? Desde o século XIX funciona ali a Ritz Escoffier École de Gastronomie Française, que é outro espetáculo. Enfim, foi a glória usufruir da mais perfeita tradução da cozinha clássica francesa. E ainda teve mais: no Le Club, um dos bares do Ritz, quem estava na cozinha era o Alex Atala, o primeiro chef brasileiro a assinar um cardápio do Ritz. Comi lá também e sabores brasileiros. Memorável. Vivi outras passagens bacanas, como recentemente, quando comi as primeiras trufas do ano, devidamente surrupiadas por um dos caçadores e levada para a Locanda del Pilone, em Alba, um adorável restaurante no topo da montanha, cercado de vinhedos por todos os lados. As ostras inacreditáveis de Cancale harmonizadas com muscadet, crepes com cidra na Normandia e, aqui mesmo em nossas terras: descobrir os sabores amazônicos no mercado ver-o-peso e no restaurante Lá em casa, do Paulo Martins, em Belém, onde provei da cozinha indigena, intocável até os dias de hoje, também foi e é emocionante.
Existe uma lenda que diz que sua foto está pendurada nas cozinhas de vários restaurantes da cidade para que os garçons a reconheçam e façam um “alerta” com a sua chegada. Você conhece essa lenda? Existe alguma técnica para se “disfarçar” e passar despercebida?
LF: Não é lenda não. É verdade de fato ( e de foto). Já vi inclusive a tal foto presa no painel de uma área de serviço só para funcionários. Ri muito com essa história. Ficava (ou ainda fica) num restaurante da Barra. Enfim, o fato é que quem me conhece nos restaurantes está (espero) na cozinha e não no salão. Mas vou a restaurantes convidada também, vou provar cardápios novos, conhecer um novo chef que entrou, participar de algum festival ou mesmo para repetir algum prato que gostei. Acho que a instabilidade das cozinhas do Rio é o que mais me preocupa. Hoje o risoto pode chegar impecável e, amanhã, intragável. No entanto, a salada de batata do Bar Luiz é a mesma desde 1887! O cabrito do Capela idem, o bolo de carne do Bar Lagoa e outros “medalhões” que não falham nunca. Não sei o que acontece… Mas voltando à pergunta: não, não faço nada para não ser reconhecida, nem sou tão conhecida assim, mas torço pela minha privacidade e pelo meu anonimato. Fica muito mais fácil para escrever depois. Ou mesmo não escrever nada. Quase sempre consigo ficar no “bolão”. Ah, e conversando com os garçons, que são as minhas melhores fontes. Mas ninguém tem medo de Luciana Fróes. Não precisa, né? Ou será que precisa?
Como praticar de verdade o jornalismo gastrô sem comprometer a forma?
Eu brinco que só como como pessoa jurídica. Como pessoa fisica, sou quase vegetariana. Frutas, verduras, folhas, queijo branco e… pão, minha perdição. Resisto bravamente a um doce, mas não a uma ciabatta, foccacia, um brioche ou mesmo a boa bisnaga. Felizmente não tenho facilidade para engordar. Só não sei até quando meu DNA vai segurar a onda… Mas depois de participar de um encontro de jornalistas de gastronomia na Grécia, onde TODAS as mulheres eram obesas, exceto eu e os homens, prometi que aprenderia a conciliar o prazer do trabalho com o prazer também de caber em roupas de dez até 20 anos, como juro que é o caso da minha Levi´s de veludo preta. Isso é para brindar com tanto entusiasmo quanto degustando um Barolo.
Seu médico vê a sua profissão com bons olhos?
Ele me dá altas dicas de vinho, tem um grupo só de médicos que se reúne para beber só rótulos bacanérrimos. É parceiro e aliado. Mas, claro, manda fazer exercício, o que prá mim é um martírio. Gosto de andar, aliás, gosto muitíssimo. Malhar é que não dá. Sarada não serei jamais. Como diz a minha amiga Patrícia Kogut, da coluna Controle Remoto, fazemos o gênero “macia”. Se bem que ela anda me traindo e está malhando horrores. Mas tem uma coisa que faço há 17 anos, o tempo que trabalho n’O Globo: não uso elevador. Diariamente subo e desço de escada até a redação. Muitas vezes ao dia.
E como enfrentar tantos drinques antes, vinhos durante e licores depois, sem que o seu “foie” fique “gras”?
Mas quem garante que meu foie não está gras? Aparentemente, nada que umas abdominais não resolvam. Já internamente, bem, (toc toc toc..), melhor deixar prá lá.
Há alguns anos não se imaginava que o sanduíche conseguissse se desvincular do conceito fast food, inclusive fazendo parte dos menus de tantos chefs estrelados. Como você enxerga esse movimento? Algum outro prato foi tão revolucionário?
Olha, sanduíches como os do Cervantes nunca foram fast food. E temos tantos outros, quase sempre criações de nossos adoráveis portugas à frente dos mais adoráveis ainda botecos luso-cariocas, que são para serem comidos com calma, sentados, como qualquer refeição bacana que se preze. Francês também come suas baguetes com patê com toda a pompa. O americano é que tem mais o hábito de não dar o valor que merece a um bom sanduba. Lendo Dilema do onívoro, livro bombástico do jornalista Michael Pollan, descobri que 19% das refeições americanas são feitas dentro de um carro. Daí o porta-copos, na frente e atrás, e outros acessórios que os carros hoje trazem para facilitar essa refeição a bordo. Nos fast foods, tudo (ou quase tudo) pode ser comido com a mão. Mas, felizmente, o Daniel Boulud lançou o hambúrguer gourmet, com um naco de foie gras e aí ganhou outro patamar. Claude Troisgros e Roberta Sudbrack também têm suas versões de chef cinco estrelas.
O que acha da fusão de cozinhas, assim como a cozinha chamada contemporânea?
Se não for confusão, tudo bem. O importante é que seja feito com conhecimento de causa. E de efeito. Mas me incomoda, por exemplo, ver a cozinha japonesa, com milênios de tradição, ser manipulada e adulterada de forma até leviana. E não é coisa difícil de se ver por aqui, não. Ao contrário, é mole, mole. Não tem nada melhor do que comer um japa autêntico, feito como manda o figurino japonês. E isso vale para todas as comidas. Uma vez o Rogério Fasano me falou que o que ele menos queria na sua cozinha era um chef inventivo. Queria um chef bom, talentoso, habilidoso, que soubesse reproduzir a culinária italiana, que está pronta há séculos. Que o cozinheiro não precisava inventar mais nada. Mas, claro, hoje pede-se uma cozinha mais leve, sazonal, de qualidade…Mas é preciso saber misturar. Há 30 anos, o Claude Troisgros, na falta de produtos de qualidade no mercado, misturou peixe com maracujá e, voilà, ficou de herança essa “marrravilha” que ninguém tinha pensando em juntar antes dele. Mas Troisgros é Troisgros, né não?
Durante muito tempo falou-se de São Paulo como a Nova York do Brasil em termos gastronômicos. Como você, Luciana, vê a evolução gastronômica do Rio de Janeiro neste contexto?
O Rio é peculiar. A gente não quer só comida. E nem precisa se mirar em Nova York ou Sampa. Temos o nosso jeito de ser e comer. Não tem outro lugar do Brasil onde se coma comida portuguesa como aqui. Isso é um presente! Jobi, Bracarense, Capela, Cosmopolita… A chamada baixa gastronomia carioca é o nosso carro-chefe. E cozinha à base peixe. Temos peixes fresquíssimos, incomparáveis, por exemplo, com São Paulo. Uma ida ao mercado de Niterói ou o do produtor, na Barra, é um espetáculo! Mas não dá para ignorar que nos ultimos dez anos, houve uma diferença enorme não só nos restaurantes como também do próprio cliente. Sem cópias e pretensão, mas com profissionalismo e empenho, a gente tem conseguido chegar lá bacaninha…
Qual foi o resultado do debate sobre o assunto no Circuito Gastronômico Rio Show? Pareceu a você, que há uma rixa entre os dois mercados?
Aquela mesa redonda foi um equívoco. Pensei que a conversa fosse evoluir para algo divertido, interessante. Mas acabou desviando e tomando caminhos e tons quase deselegantes. Com os componentes da mesa, com a platéia e comigo na carona. Tinha feito uma capa sobre os “pauliocas”. numa época em que vários deles tinham chegado por aqui com seus restaurantes. O resultado foi ótimo. Mas ao vivo, não funcionou. Foi constrangedor. Um erro que espero não repetir mais. E torço, aqui com os meus garfinhos, para que jamais participe de nada parecido.
Lembro-me de uma citação da Ruth Reichl, em um de seus livros, em que ela conta que chegou em um restaurante de NY, sem reserva, e entrou direto, sem ficar na fila. Quando ela entrou, viu no bar o Príncipe das Astúrias. Você já esteve em alguma situação em que foi mais importante do que uma celebridade em um restaurante?
Felizmente não. Mas já dividi a mesma mesa com um príncipe. Ou seja, nem ele, nem eu…
O jornalismo gastronômico tem que se posicionar pela inovação ou retratar o que simplesmente vê?
Os dois, né? Eu adoro fuçar, ler jornais de fora, ver o que está acontecendo longe que, de uma certa forma, acabará chegando até aqui. Mas é descobrir sem aderir, necessariamente. Mas se é novo, vale o registro. Veja só: pulando de google em google, descobri que tem um livro sendo feito na França só sobre tapioca. E só de chefs franceses. Aliás, o Troisgros está nele. Minha amiga, que está em Nova York, me contou que foi no Daniel, do Boulud, e tinha caviar de tapioca no cardápio, que é uma invenção do próprio Troisgros. A globalização é espetáculo! Mas é preciso estar antenado.
Para estar sempre atualizada com a evolução da gastronomia, como você alimenta seu pensamento? Como você faz para instruir ou treinar o seu paladar e catalogá-lo em uma biblioteca de sabores sensoriais e que leva você a ter uma experiência positiva ou negativa com aquele prato?
Eu percebi que curtia escrever sobre comida no dia que olhei minha mesinha de cabeceira e me dei conta de que só tinha livros sobre comida. Leio muito, leio tudo, sem preconceito algum. E fuço o quanto posso. A primeira coisa que faço quando chego num lugar que não conheço é entrar num supermercado. Vou olhar os laticínios, os legumes, as frutas, os temperos… É um dos meus programas prediletos. Acho que treinar paladar é se habituar a um determinado sabor. Há uns dez, quinze anos trás, não poderia imaginar que viraria uma viciada em peixe cru. O máximo que eu tinha chegado, até então, era num steak tartare e, mais tarde, o carpaccio. Hoje estranho frituras, gorduras, cremes em excesso… O meu paladar se acostumou a apreciar esse tipo de comida mais saudável..Uma coisa aprendi nesses últimos dez anos: a confiar e ter segurança no meu gosto.
Levando-se em conta que em uma cozinha autoral um mesmo elemento, ingrediente ou produto terá sempre visões diversas e próprias de quem cria, que parâmetros você utiliza quando avalia esse tipo de trabalho?
Se ficou bom ou não. Se caiu bem ou, ao contrário, bateu estranho. É só isso.
Em uma degustação, quais seriam os três critérios principais que você considera para uma avaliação técnica?
Não acho que eu precise ser uma perita, que nem são esses caras de companhia de seguro, que olham tudo, debaixo do capô, em cima sei lá da onde, tudo para encontrar um defeito. Não, definitivamente estou fora disso. Como querendo gostar, achar acertos e não erros. E comer não tem essa de avaliação técnica: é visual, paladar, prazer, sensações, impressões… Só acho chato quando identifico que um prato foi copiado de outra casa. Fiz uma vez uma capa pro caderno Ela que falava exatamente sobre isso, sobre a cozinha clonada. É feio, não acha?
Roanne ou El Bulli?
Roanne. Chega de gastroquímica
Uma crítica mais pesada pode destruir um negócio, às vezes construído com sacrifício. Esta avaliação pode estar errada, como um erro do Judiciário sem apelação a outra instância. Como lidar com isto?
Penso nisso sempre, especialmente por conhecer de perto as dificuldades que um dono de restaurante enfrenta em vários aspectos. Não é fácil manter um restaurante aberto nessa cidade! E como eu sei disso… Há momentos em que entro numa casa enooooorme com três, quatro mesas ocupadas. E todo o staff a postos. Fico arrasada quando me contam que alguma casa está mal das pernas, que vai fechar… Torço pela nossa gastronomia, sempre. Mas não sou imparcial. Como crítica que sou, não dá prá minimizar o que está ruim. Mas vivo dizendo que, dos criticos do jornal, eu é que tenho o papel mais delicado. O crítico de cinema por exemplo, tem menos chances de esbarrar com o diretor de um filme que ele não gostou; o de música, idem… Já o de comida… Agora mesmo vivi uma situação insólita: critiquei uma casa nova, que não gostei, e acabei ficando lado a lado com uma das donas na ante sala de um hospital, onde fomos visitar uma amiga em comum, queridíssima. Eramos só nós duas ali, numa sala de hospital, num silêncio absoluto. Depois de trocarmos algumas palavras, ela resolveu quebrar o gelo e falar” e a sua crítica, heim…” Tentamos colocar as coisas em pratos limpos. Mas sempre fica um resíduo, né? Não tem jeito..
Já sentiu vontade de refazer uma crítica por ter percebido depois da publicação que teve uma primeira impressão errada?
Não. Mas já vi vários restaurantes melhorarem com o passar do tempo. E daí merecem um reconhecimento. Aliás, essa parte é das melhores.
O Fat Duck, na Inglaterra é considerado por várias publicações o segundo melhor restaurante do mundo. Por lá encontrei pratos muitos estranhos, que sequer consegui levar à boca, como, por exemplo, o sorvete de bacon. Você já passou por isso? Ou você realmente prova tudo nessas situações?
Eu já fui parar num restaurante de um chef neurologista, nos arredores de Barcelona, que fazia comida “cabeça”. Fui com o Josimar Melo, da Folha de São Paulo, e o Rodolfo Bottino, que tinha um programa de comida na TV Cultura. Bom, lá estavamos nós comendo não sei o quê que fazia um zumbido no ouvido, o outro prato dava secura na garganta; o que veio em seguida fazia arder o olho. Fazia o tipo cabeça-tronco e membros. Uma loucura, literalmente. Às vezes me sentia brincando de gincana, onde tinha que adivinhar o que eu estava comendo! Pensou que é peixe? Hahaha, não é. É melancia. Juro que foi uma coisa por aí. No The Fat Duck botei uma concha no meu ouvido… Eu estava com uma amiga que não via há tempos, doida para saber da sua vida e não podia conversar, perguntar nada: tinha que ouvir o barulho das ondas do mar, como se não tivesse feito isso a minha vida inteira no Leblon, Búzios, Angra… Mas comi muito bem em vários resturantes da linha Adrià. O Arzak foi excepcional. Recentemente estive no L´Atelier do Joel Robuchon e também amei as modernidades do chef. Mas teve sorvete de foie gras…
Na introdução do livro “O homem que comeu de tudo”, o crítico da Vogue, Jeffrey Steingarten, descreve a sua cruzada contra os preconceitos alimentares que tinha antes de iniciar a sua carreira. Você passou por alguma cruzada – ou romaria – do tipo?
Continuo passando. Não faz muito tempo que o César Hasky, do Ten Kai, me chamou para provar gafanhoto. Tinha acabo de chegar do Japão. Foi uma curtição. Até gostei. Mas, arô arô Hasky, arigatô, mas não me chama prá comer cobras e lagartos não, tá? Já fiz a minha parte. Mas já encarei “de um tudo” num roteiro que fiz pelos pés-sujos do Rio, escolhidos pelo Jaurez Becoza, da coluna Pé sujo do RioShow. Foi heavy metal! Era eu e um grupo de chefs. Carlota, Checho Gonzalez (que vibrou), o Luciano Pessina, que gostou tanto que acabou abandonando a “lotada” e ficando num deles…. Foram dez de uma vez, um deles em frente a Polinter, na Praça Mauá. Até hoje tenho o cheiro gravado na memória…
Quais são as especialidades da sua cozinha, em casa?
Cuscuz marroquino, uma das poucas coisas que faço direito. Ah, e tapioca, que aprendi a fazer recentemente. Estou uma expert! Não gruda, é fininha, salgadinha na medida… E paro por aqui. Estou longe de saber cozinhar. Mas desconfio que o Galvão Bueno também não bate um bolão, que a Patricia Veiga não sabe costurar, que a Babara Helidora não encara um palco….
A gastronomia brasileira ficou conhecida mundialmente pelos seus ingredientes exóticos. Mas nós temos muito mais do que isso. Como você vê a contribuição da gastronomia brasileira dentro do cenário mundial?
O Ferran Adrià, na abertura do livro do Alex Atala, diz que particularmente duas cozinhas do mundo interessavam a ele: a tailandesa e a brasileira. Segundo ele, seriam os sabores do futuro. Outro dia estava escrevendo um box para o Rio Show sobre a evolução na gastronomia no Rio e me dei conta de que eu vivenciei o processo passo a passo. Hoje, uma das coisas que eu mais curto é ver que já saimos do exagero e do equívoco de que bom e chique é o que vem de fora e estamos finalmente curtindo o que é nosso. E justiça seja feita: os chefs de fora ajudaram muito a fazer esse resgate e dar esse upgrade. O melhor da nossa culinária é que tem gosto pra tudo. E ingrediente pra todos.
Por que ser crítico gastronômico? Como foi a transformação da paixão pela gastronomia em uma profissão?
Me formei nos anos 80, ou seja, já deu para fazer um pouco de tudo em jornalismo: rádio, televisão, revista. No jornal, fiz de esporte a coluna social e saúde. E é esse o meu link com a comida e, tempos depois, com a gastronomia. Escrevia sobre alimentação, quando a culinária local começou a virar gastronomia. Por trás dessa simples mudança de terminologia, surgia uma revolução. De sabores, felizmente. Ana Cristina Reis escrevia uma páginas sobre restaurantes no Rio Show, quando foi chamada para editar o caderno Ela. Eu estava numa coluna social, a Coluna do Swan, que fazia com a Bety Orsini. No que a Ana saiu, me colocaram no lugar dela, caiu de bandeja. Os restaurantes começaram a caprichar, os clientes a exigir, os vinhos surgiram, os orgânicos também, nossos produtos melhoraram. Enfim, mudou tudo. Tanto que hoje tenho quatro páginas de comida semanais, com direito a uma coluna de crítica, coisa impensável há dez anos atrás. Pois é, lá se vai uma década! E cada dia gosto mais do que vejo, como e faço. Não me vejo trabalhando no jornal em outra editoria. Aliás, se você perceber, transito por todas elas, economia, internacional, suplementos… e sempre falando sobre o tema. Na redação, qualquer coisa ligada a comida, a turma me consulta. Agora mesmo o Chico Otávio foi ao Vietnã e trocamos figurinhas antes de ele ir. Acho o máximo isso.
Quais são o luxo e o lixo da gastronomia?
Comer verduras colhidas recentemente, um peixe fresquinho recém-pescado, gotinhas de limão galego, que eu amo, um vinho rosé bacana e um belo prato de queijos pra fechar. Isso pode ser um luxo. Mas pode ser também uma porção de beluga, um naco de caviar, uma lasca de tartufo bianco. O conceito de luxo é vasto. O de lixo também. Mas particularmente acho o maior lixo na gastronomia é cobrar R$ 700 por um prato. E breguice de quem paga. Não há beluga que justifique uma cifra dessas por um simples prato. Muito menos aqui. Não falo de menu degustação. Falo de prato. No Ritz, Adrià, Robuchon, Blumenthal não tem prato no cardápio com esse valor. Mas aqui tem.
Você tem fome de quê?
Ah, depende do meu dia, do meu “saldo credor”, das condições climáticas, da minha vida afetiva, do meu lado familiar… Mas falando por hoje (são dez da manhã!), queria estra comendo ostras, tomando um chablis ou uma bela borbulha (mas já???) com gente amiga do lado (minha filha e o namorado, acima de tudo). Gosto muito de comer de dia. Aliás, sou mais diurna do que noturna. Gosto de dormir cedo. E aprendi, também viajando, que os preços de almoço são sempre melhores. Recentemente, em Londres, cidade onde como melhor no mundo (vai por mim…) consegui ir a todos os restaurantes mais estrelados do momento. Sempre no almoço. De noite, seria impagável. Aqui temos o problema de nem sempre o chef estar na cozinha. Aliás, quase nunca, né? É uma pena. Acho almoço o máximo. Dá pra comer, beber e digerir a tempo de chegar inteirona à noite. Já jantar… E tem esse visual do Rio, que é qualquer coisa de espetacular. Essa semana mesmo fui comer acarajé (outra paixão) no Siri Mole da Avenida Atlântica, dia de semana, temperatura agradabilíssima. Não tinha sambista, camelô vendendo óculos, nem ninguém jogando amendoim na mesa e me chamando de “tia”. Um oásis em pleno calçadão da Atlântica. E aquele visual impagável… Mas já saí muito de casa para comer isso e acabei comendo aquilo. E foi um sucesso. A coisa quando é muito programada nem sempre funciona. Por isso é que quando escrevo minhas críticas, não me programo. Entro no restaurante que cruzar o meu caminho
Você tem sede de quê?
De vinho, sempre. E mais recentemente, de saquê. Não sou de uísque, cerveja, cachaça, conhaques e que tais. E como já bebo bem, não quero aprender a gostar de beber mais nada. Já está de bom tamanho, aliás, de ótimo tamanho…
Excelente essa entrevista, Pedro! Lu tem ótimo texto, excelentes respostas e um embasamento imbatível. Bjs
Ola Pedro Mello, bom dia. gostaria de convidar você para conhecer o Bistrô onde estou como Sócio-Sommelier ficaríamos honrado com sua presença e este mês lançamos a Carta de Vinhos para o Verão carioca, forte abraço.
Bistrô Ouvidor, rua do Ouvidor 52 – Centro – Rio de Janeiro
Efraim Moraes
tel 98212-8851
Bela entrevista e grande homenagem à Luciana Fróes. Parabéns!!!!