Comer bem, um caso de polícia
Quando me interessei de novo por literatura policial, vi que não poderia apenas retomar a leitura do ponto em que a interrompera, anos antes. Teria de começar de novo. Isso significaria voltar, ao menos em espírito, à minha adolescência, fácil de dizer, impossível de fazer. Não podendo recompor a juventude, recompus a biblioteca, desfolhada pelo tempo.
Com muito método e algum vagar. A calma, afinal, é a pressa perfeita. Retornei a Poe e, com prazer maior, a Chesterton. Revisitei Conan Doyle, me desencantei de Holmes e do elementar Watson, tornei a Edgar Wallace sem entusiasmo, voltei a tomar os sucessivos drinques de que se alimentava o herói blasé de Dashiell Hammett, enjoei de Hercule Poirot e de suas bizarrices, até deparar com o rabugento comissário Jules Maigret, criação genial de Georges Simenon.
O que mais me atrai em Maigret não é a sua capacidade de destrinchar mistérios relativamente fáceis, mas o seu tédio do heroísmo, o seu gosto pelo chope fartamente tomado numa varanda de bar, na Place Dauphine, e o seu desgosto em ter de sorver péssimos vinhos brancos, no interior.
Constatei então que, entre os autores modernos, boa parte deles dava aos seus heróis ou heroínas o requinte do bem comer. Todos eles têm o seu lado chef. Desde o obeso Nero Wolfe, imaginado por Rex Stout, até a delgada e bela Kay Scarpetta, criada à sua imagem e semelhança por Patrícia Cornwell. Médica-legista, Kay prepara massas e molhos requintados, depois de longamente dissecar um cadáver. E tem sempre um esplêndido Chianti (se é que isso existe) para ornamentar a festa. Não difere muito do comissário Montalbalno, de Andrea Camilleri, que fica mais arguto depois de um antepasto de polvinhos, seguido de quatro percas-do-mar.
Foi com Morag Joss e o seu recente e fascinante Música fúnebre, que vi, perfeitamente redivivas e harmonizadas, as tendências clássicas e contemporâneas do romance policial. Desde o dom dedutivo do Padre Brown, de Chesterton, até o mistério bem urdido, que fez o sucesso e o encanto de P. D. James, embora James dê pouca importância aos estômagos de seus personagens.
Por que todos são chefs? Por uma razão simples: quem está sempre convivendo com a morte tem mesmo de se compensar com a celebração da vida. Como qualquer um de nós deve ou deveria fazer. Morag Joss nos explica que essas pessoas de ficção, especialistas em crimes e caçarolas, são do tipo que “consideram quinze minutos de ponderação diante de oito tipos diferentes de alface um tempo bem gasto”. Que inveja!
Pedro, que belo texto e linda homenagem ao seu pai. Sigamos comendo a vida, que ela merece.
Adorei o texto, seu pai tinha razão. Enquanto estamos por aqui, nessa jornada de aventuras e surpresas, algumas de perder o fôlego, vamos celebrar a vida! Bj querido 🙂
Belíssimo texto. Bela homenagem! Abs
Li com prazer o texto do seu pai, pois gosto do gênero e adoro o Maigret e o Montalbano. Aprecio o enlevo daquele momento “sagrado” que dedicam ao “demi” degustado num café da Place Dauphine ou à refeição com peixes e frutos do mar fresquinhos em Vigata. Pura delícia! Beijos, sempre saudosos.
Escrever bem, um caso de família…
Também adoro o Maigret e o Montalbano.
Apreciei o texto do seu pai e amo tudo o que você escreve, e do jeito como o faz.
Beijos e saudades.
You flatter me, Dear!