Noite dessas, a insônia atacou às 5 horas da manhã. Depois de 50 minutos de fritura inútil, me segurei no controle remoto, derradeira alavanca para me içar daquele pântano matinal rumo ao dia que já se mostrava perdido. Disparei contra a tela e a programação anunciava o Globo Rural. Encarei. E aprendi tudo sobre aspargos: que a produção brasileira ainda é modesta, mas se concentra em mais de 60% em solo paulista. E que a estiagem prejudicaria – ou, pelo menos, atrasaria – a safra deste ano. Reli as anotações que já tinha para os verbetes em português, francês e italiano. Complementei com os autores mais antigos para o afinamento histórico. O resultado está abaixo, mostrando, através do charme aristocrata do ingrediente, que o dia não estava tão perdido assim.
A palavra aspargo se origina no latim asparagus, que tem origem no grego antigo asparag, e este, no persa asparaj, broto, uma referência à inflorescência ereta das pontas. É ali que se concentram os sabores e paladares do aspargo, que pode ser degustado com os dedos, sem que se perca a elegância ou a etiqueta. Que o diga Teofrasto, autor das mais antigas linhas sobre a planta, repetidas depois, em Roma, por Catão e Plínio, e, bem depois, por Freud, em suas memórias à mesa.
“C’est la note honnête / d’un festin ardent / J’aime que sa tête / Croque sous la dent”, confirma o soneto de Monselet. É também na ponta que recaem todas as sugestões afrodisíacas advindas do formato fálico e ereto do estágio da planta.
Quem tiver em mente que os aspargos foram levados à França por Catarina de Médicis, como sugere a lenda, que esqueça. A iguaria já era degustada pelos egípcios, gregos, gauleses e galo-romanos e foi registrada mesmo durante uma longa fase de esquecimento, na Idade Média. Era o esparge, do francês médio, de 1256, que ganharia formato definitivo – asperge – já com Rabelais, em 1548.
O resgate triunfal da iguaria deu-se durante o reinado de Luis XIV, que acossava pessoalmente os seus jardineiros em busca de um aspargo branco que maturasse já em dezembro, não em março, como é comum. O próprio Rei Sol iniciaria uma disputa em torno do molho ideal para os aspargos: creme, manteiga, hollandaise ou vinaigrette.
O creme, preferência da corte, saiu da contenda após os excessos e a conseqüente crise de apoplexia de um tal abade Terrasson; a manteiga seria absorvida pela sauce hollandaise; e os dois finalistas foram salomonicamente divididos no roteiro da grande refeição pelo paladar: se os aspargos forem servidos no início, vale o aveludado da hollandaise; se fecharem os pratos salgados, a dica é o vinaigrette, mais pungente, ácido e digestivo.
Em relação ao preparo, poucas dúvidas em relação a escaldar tão breve que justifique a máxima atribuída ao imperador Augusto: “Velocius quam asparigi coquantur”. Escoffier estimava o tempo preparo de um maço de dez belos exemplares da iguaria em até 25 minutos.
Mas a polêmica está de volta na escolha da cor do aspargo. O branco, cultivado sob a terra, protegido da luz do sol, fez a fama de regiões como Argenteuil e, mais recentemente, dos “Sables des Landes”, esta protegida por selo IGP; o verde, preferido por Escoffier, para horror de seus compatriotas, pode ser consumido inteiro; o roxo, tido por muitos chefes como o mais saboroso.
Na Itália, os aspargos imprimem sabor a risotos e a sopas cremosas. No outono, sua ponta perfura os ovos fritos que recheiam certos tipos de raviólis trufados. E era mesmo com ovos que Apicius sugeriu sua fórmula para o purê de aspargos. Duas variedades do país, o ‘bianco di Cimadolmo’ e o ‘verde di Altedo’ têm suas denominações protegidas por chancela IGP, da União Européia.
A mesma chancela protege também os espanhóis ‘espárragos de Huétor-Tájar’ e os ‘esparragos de Navarra’, denominação de origem de uma variedade branca e robusta, produzido em diversos municípios das regiões de La Rioja, Aragón e, claro, Navarra, às margens do rio Ebro. São apreciados frescos ou em conserva, em tapas e pinchos ou em receitas mais elaboradas, como assados e sopas. O austríaco ‘marchfeldspargel’ e o francês ‘asperge des Sables des Landes’ estão entre outros cultivares tutelados pela União Européia.
Todas essas variedades, inclusive a de Argenteuil, originada antigamente nas cercanias de Paris, estão nos livros de recietas de nomes da moda, como o do Noma e de Adrià, de Escoffier, que lhe dedica dez receitas, de Dumas, que relaciona 11 fórmulas, e Ducasse, que se refere aos aspargos brancos da região de Landes, dos verdes de Vaucluse e de Villelaure (seus preferidos), os rosados e os roxos da Midi, da Provence e do Vale do Rhône, no capítulo que dedica ao ingrediente, em seu livro Dictionaire Amoureux de la Cuisine.
Na mesma, obra, Ducasse lembra da construção aristocrática que Marcelo Proust faz do aspargo em “À procura do tempo perdido”:
“Meu encanto era diante dos aspargos, ensopados de ultramar e de rosa, de cujas espigas, finamente salpicados de malva e de azul do mar, se degrada insensivelmente até o seu pé, ainda assoalhado portanto ao nível de sua planta, por irisações que não são desta terra”
Menos delicado, Alexandre Dumas, distila agressividade contra os italianos no verbete sobre o aspargo, em seu Grand Dictionnaire de Cuisine:
“En Italie, où les gouts sont plus étranges que raffinés, on prefère l’asperge sauvage. Les animaux, les chats, les chiens aiment beaucoup ce légume”.
Além da sofisticação que traz à mesa, os aspargos são fontes de ferro e vitaminas B, C e, principalmente, A. É rico também em minerais como o potássio, o fósforo e o magnésio, o que pode contra-indicá-lo para ce pode tornar o aspargo contraindicado para casos como os de gota. E podem se tornar ainda um desafio aos sommeliers, pois a complexidade de seu paladar só encontra par, segundo o crítico inglês Hugh Johnson, para vinhos como os sauvignon blancs mais maduros.
Ou ainda um sémillon, um Jurançon ou um pinot gris alsaciano. Chardonnay, somente quando a manteiga ou o molho holandês estiver na guarnição.
Mas cuidado: nada do que foi descrito nesse verbete se aplica ao aspargo mumificado, mórbido e tristemente confinado ao cativeiro de latas e outros sarcófagos de conservas. China, Estados Unidos, Peru, México e Espanha são os maiores produtores mundiais do aspargo.
Genial! Um tratado!
Nunca pensei que ao comer um aspargo encontraria tanta historia sobre esse legume.
não sei se admirei as anotaçoes sobre o dito cujo ou o trabalho de pesquisa do autor!
Beijos da
Diva
Pedro adorei saber anta coisa sôbre aspargus, não poderia imaginar como é tão importante assim. Muito obrigada por adicionar um pouco de cultura em mim. Bejos