Boulud em execução

[10 out 2011 | Pedro Mello e Souza | 4 comentários ]

Shot ribs, de Daniel Boulud: costela no melhor prato da noite.

 

Já descobri qual a linha nada tênue que separa o gourmet do glutão. É a da imagem que o comensal faz de seu prato, que, na maioria das vezes, já sofreu o ataque de um garfo ansioso. Por essas e por outras, as reportagens sobre jantares – as minhas, pelo menos – podem vir desfalcadas, tremidas, mastigadas, violentadas.

 

Foi o que aconteceu na sexta-feira, durante o jantar preparado por Daniel Boulud, com o auxílio luxuoso (no sentido luxuriante da palavra) de Roberta Sudbrack e Claude Troisgros. Pensei até em roubar as fotos do Oscar Daudt, disciplinado companheiro de mesa, mas achei melhor apanhar e tentar, depois de mais de meio século de tentativas, lavrar alguma vergonha na cara.

 

O serviço parecia um balé. Champanhes e vinhos foram servidos sem parcimônia por um grupo de sommeliers que reconheci de algumas das melhores casas cariocas. Era o início do último ato do evento que Antonio Campos, da importadora Zahil trouxe para mudar de vez (junto com o da WineBrands, em setembro), o conceito de road show de vinhos no Rio.

 

Cardápio personalizado do evento

 

O agito começou na antevéspera, com o almoço encontro do chef francês com a comunidade gastronômica carioca, o evento dos vinhos da importadora e o jantar, aberto ao público, mas que já estava vendido de véspera: 270 lugares – com fila de espera de 90 pessoas.

 

Dos petiscos do coquetel, preparados por Claude, consegui provar o biscoito de polvilho com dedo de moça, picante na medida. E os chips com tartare, volumosos, mas que ajudaram a dominar a ansiedade da espera – em degustação, nunca vá com fome. Ou faça como eu: perca a foto. Registro o acompanhamento: o champanhe Drappier Carte d’Or.

 

Entrada: foie gras de Roberta Sudbrack

 

A festa começou com um foie gras em terrine, primeiro dos serviços de Roberta Sudbrack. Sutil, com a companhia inesperada de uma brandade de bacalhau e a dupla com um igualmente inesperado, mas triunfal riesling da Nova Zelândia, o Framingham Classic 2008.

 

Na seqüência, o primeiro solo de Boulud: um lagostim de duplo contraste grego: a básica, com o iogurte ao hortelã, e a ácida, com o pó de gremolata de limão. Delicadeza, suculência e sabores nítidos, em um prato em, no mínimo, três dimensões. Pra dizer a que veio. Já conhecia do Garcia & Rodrigues o Trimbach, um pinot blanc alsaciano, com o qual o prato harmonizou.

 

Lagostim de Boulud: várias dimensões de paladar em um único prato.

 

Foi uma bela ousadia o cherne com batata-baroa, combinação com a marca de Claude Troisgros. Mas algo aconteceu com os da minha mesa, que chegaram secos (seriam alguns segundos mortais em alguma salamandra?), mas sem desmerecer a composição do prato, o seu vinagrete e seu copo eleito, um chardonnay sul-africano, o Rupert & Rothschild Baroness Nadine 2008.

 

O cherne de Claude Troisgros

 

O próximo prato me lembrou uma viagem a Roma, no ano passado, com um grupo de jornalistas. Eu, homem, todas as demais, mulheres, todas de dieta e sem apetite para a barriga de porco de do restaurante Palazzetto, na Piazza di Spagna. Conseqüência dramática: comi todas. Estavam preparadas à perfeição, quase fondants , como a que Roberta Sudbrack preparou para o prato seguinte. E com direito a canjiquinha e farofa de banana. Na companhia, um Rioja excelente, o Viña Ardanza, que repeti e guardei para sentir a evolução de um dos paladares que, para meu leque particular, é o mais típico da uva tempranillo, o aroma de creme brulée.

 

Barriga de porco, Roberta Sudbrack

 

A candidatura desse prato como o melhor da noite só poderia ser quebrado com um tiro de grosso calibre, que Daniel Boulud teria de dar para seu último prato de carne. Ele veio na forma de uma costela (short rib). Não tinha mais condições de ir à cozinha para saber quanto tempo aquela peça ficou no forno baixo.

 

Mas a carne se desfazia no olhar: tornou-se um creme, que ganhava o contraste do purê de aipo, das castanhas, dos cogumelos chanterelle, do molho do vinho – e do próprio vinho que o acompanhou, um notável Château Clarke 2005, um médoc assinado pelo Barão Edmond Rothschild.

 

Não tenho problemas com sobremesas, desde que elas não prejudiquem a lembrança dos pratos anteriores. Quase não experimentei a sobremesa de chocolate que a dupla Benoît Sinthon e Yves Michoux apresentaram no fim. Era a típica apresentação que costumava irritar o Nizan Guanaes, que implicava com o que chamava de “comida de decorador”.

 

Sobremesa dos chefs do Il Gallo d'Oro

 

A primeira colherada não me fez dançar o ula, como costumava dizer a Oprah. Mas os dois chefs comandam o Il Gallo d’Oro, do Hotel Porto Bay da Ilha da Madeira. Só que da Madeira vinha também o vinho para acompanhar o prato: um H&H da uva bual, típica da ilha. As notas de 15 anos de envelhecimento mostraram que aquele vinho fazia parte da sobremesa: marmeladas muito escuras, café, tabacos e o chocolate amargo que caíram como uma calda.

 

Durou uns bons 20 minutos a chegada de Boulud no salão. Aplausos, tietagem, fotos pra posteridade, todos os comensais cercando os chefs, discursos emocionados – Claude chegou a embargar a voz ao microfone. E o chef de sorriso escancarado estava ali, sem um único poro soado na testa, que mostra um pouco da serenidade com que encara a sua função de administrar o calor de números como 15 restaurantes ao redor do mundo, mais de 1.200 funcionários, mais de 66 mil garrafas de vinho.

 

A tranqüilidade naquele momento pode ter explicação na compreensão do público que Boulud encarou naquela data. No dia anterior, ele já me alertava, na entrevista que fiz com ele (sai na próxima edição da EatinOut), após o encontro com o mercado: “o Brasil é mais sofisticado do que pensa que é”.

 

Se for mesmo, entendeu bem o que aconteceu ali.

 

Daniel Boulud e um papagaio de pirata (Foto: Cristiana Beltrão)

 

 


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Depoimentos

  1. Laura Cavallieri disse:

    Acredito que haja o momento certo para cada um deles aparecer. Certas vezes gourmet, em muitas outras glutão. Adorei as fotos! Acho que eu não conseguiria me conter, meus pratos estariam desfalcados no click.

  2. Meu Caro Amigo Pedro,
    Devo-lhe dizer que foi a resportagem mais divertida e seimpatica que li sobre este evento que tanto prazer(e trabalho) nos deu fazer. Obrigado pela sua presença e obrigado pela suas palavras simpaticas,
    Forte abraço,
    Antonio

  3. Hortensia Salek disse:

    Meu Pedro:
    Babei, literalmente, com os seus artigos e como os escreve; me deliciei com as divinas propriedades da sálvia; com a entrevista do Boni (ótimas indicações!); derreti-me diante das fotos indecorosamente apetitosas; você fala de vinhos com uma naturalidade e um conhecimento (íntimo, eu diria…) dignos do melhor dos “sommeliers” internacionais; concordei em que se come pouco pato no Brasil… e tem coisa melhor que um “confit de canard”? (gosto bastante do Garden – o meu bolso ainda o permite e sempre que posso, vou lá, onde já comi a paella Pepe Torres); no momento, sonho com a possibilidade de ir ao Bazzar, chutar o balde da minha dieta indecente, e provar, senão todas, algumas das formas sensacionais de wagyu (nunca comi). Esta coleção de mestres e seus pratos extraordinários, matou-me a pauladas. Enfim, você, a Eatin’Out, seus assuntos e personagens são uma ameaça “veramente periculosa” para a sua velha amiga e sempre ardente admiradora. Mil beijos,