Os alentejanos não fazem cerimônia ao denunciar: “o presunto pata negra é feito com o nosso porco preto”. Afirmam com a tranquilidade, a segurança e a fleugma de que essa determinada certeza pouco contribuiria para a o reconhecimento da qualidade do seu rebanho suíno.
Mas enganam-se. Oficialmente, o reconhecimento já veio há 8 anos, quando a Comunidade Européia registrou a grife Porco Alentejano e chancelou a marca com um selo de Denominação de Origem Protegida.
Extraoficialmente, porém, esse reconhecimento remonta aos romanos, que não só os consumiam, mas também os exportavam. Curiosamente, o domínio árabe, sob as proibições do Alcorão, não diminuiu a produção e o degustar do porco, nem em Portugal nem em Espanha.
Pelo contrário, até, pois o censos realizados nas cidades mais importantes, inclusive Córdoba, a capital da ocupação, mostrou um crescimento do número de cabeças – foi tido como alimento são, durante os quase mil anos de Pax Arabica.
Com a retomada pelos monarcas católicos, o porco foi usado como mote de humilhação dos mouros expulsos, até mesmo nas decorações sacras, com porcos acompanhando imagens de santos em quadros, esculturas e vitrais.
Hoje, o porco alentejano – Sus ibericus -, preto no manto e nas patas negras, é nimal de robustez admirável – e agressivo até na hora da foto, especialmente o macho alfa do rebanho, alerta diante da fêmea e seus bacorinhos, mas imponente ao envergar as cicatrizes profundas em seu corpo, que ostenta, após duelos pela liderança da vara, como as dragonas de um general.
De suas carcaças imensas, recolhem-se as carnes, gorduras, vísceras e barrigadas, que serão distribuídas ou transformadas naquilo que brilha na espécie: os embutidos e as carnes curadas, iguarias com o reconhecimento da União Europeia, como os paios de Beja, o chouriço de Vinhais e as alheiras de Mirandela,
E, claro, os presuntos de porco preto do Alentejo (DOP): Barrancos, Vinhais, Barroso, Campo Maior e Elvas.
São especialidades que, tal como seus similares do outro lado da fronteira, são perfumados ao longo da vida do animal, por sua alimentação à base de bolotas de azinehira (Quercus rotundifolia) e do sobreiro (Quercus suber), matriz da cortiça, outro emblema lusitano.
A carne fresca é servida em especialidades como as fêveras (ou febras) e as bifanas. Ou em assados de lombo, como o que a Herdade Grande manda servir a visitas ilustres (ou quase). E ainda em fritos, que se guarnecem com as chamadas migas à alentejana. Os rojões, filés de lombo, ganham a companhia das amêijoas, para o clássico carne de porco à alentejana. As orelhas e os pés saem do forno e ganham o banho da coentrada, enquanto os miúdos, inclusive corações e pulmões, servem às fórmulas de cacholeiras e sarrabulhos.
Segundo os rigores da denominação, a carne do porco alentejano nunca pode ser congelada. No máximo, será maturada em ambiente refrigerado (nas condições de temperatura entre 2 e 4 graus e humidade relativa entre 85 a 90%) nunca depois de 48 horas de abatido.
Os porcos não eram somente consumidos pelos romanos: eram também exportados. Curiosamente, o domínio árabe, sob as proibições do Alcorão, não diminuiu a produção e o degustar do porco, nem em Portugal nem em Espanha. Com a retomada pelos monarcas católicos, o porco foi usado como mote de humilhação até mesmo nas decorações sacras, com porcos acompanhando santos em esculturas e vitrais.
No Censo de 1870, dados espetaculares: o porco é o gado predominante, sem rival, “do mais abonado lavrador ao mais mísero cabaneiro”, revela o relatório original da época. Mais ainda, 95,8% dos portugueses abaixo da linha de pobreza mantém a sua pocilga: “porque os menos afortunados é da rez suina que tiram o unto para o fumeiro, que engroda um tanto e dá tempero à sua magra panela”, descreve o documento, em grafia original.
No relato de José Maria Picão, em seu livro Através dos Campos, de 1904, a ambientação, dois retratos da rotina em torno do cuidado com os preparados após o período conhecido como “Matança dos Porcos”, em fins de outono:
“O fumeiro comprehende: grossas mantas de toucinho empilhado em salmouras próprias; as varas de enchidos como paios, chouriços, linguiças, morcellas, cacholeiras e farinheiras, cada qual em separado e todas suspensa por cordas presas ao tecto, formando por este modo a parreira ou latada de carne cheia previamente defumada nos vãos da chaminé. Se a carne já enxugou, a latada, não aparece pois que o enchido passou a armazenar-se em potes de barro ou lata. … E todos estes mantimentos ali figuram, entre balanças, pesos e medidas, não por ostentação de abundância, mas como previdência económica de primeira intuição – alimentar com barateza uma creadagem avultada.”
“As matanças dos porcos gordos para o preparo do fumeiro, proporcionam ao pessoal da lavoira melhoria de alimentação. Nas manhãs d’ essa faina, todos que a desempenham, bebem o seu copito de aguardente, a pretexto de aquecerm o estômago e matarem o bicho. Depois de almoço, concluída a chacina, regalam-se á vontade com boas talhadas de chouriço e morcella fria, acompanhadas de azeitonas e vinho. A superioridade dos puxativos estimula-os a encherem e emborcarem os copos com frequência, pondo-se todos meio tachados e alguns a cahir. “