(Este post seria impossível sem meu irmão Eduardo, que me resgatou a coleção completa do Tintim da nossa infância. No original, bien sûr)
O cardápio do restaurante Le Petit Vingtième, no Museu Hergé, dedicado às aventuras de Tintim, é bem interessante. Sugere entradas como o risoto aos cogumelos dos bosques belgas e o croustillant de queijo chèvre com figos. Indica entradas que vão da codorna recheada com ameixas secas e redução de porto ao civet de marcassin (um ensopado rico do leitão de javali das Ardenas). E apresenta sobremesas com especialidades como a crème brulée com o fava autêntica de baunilha e o spéculoos (um biscoito flamengo) com tiramisù de frutas vermelhas. Três pratos com vinho, 30 euros. Como opção para a bebida, la caipirinha.
Interessante mesmo, portanto, muito embora a seleção de pratos e vinhos em nada remeta ao bom gosto de nosso herói à mesa. E isso fica claro no filme As aventuras de Tintim: O segredo do Licorne, que estréia no próximo dia 20.
Tintim não tem grandes relações com a gastronomia. Ou sequer pelo bom copo. Ao contrário, após a edição do nono episódio da série impressa, O caranguejo das tenazes de ouro, ele passa da abstinência à reação patrulheira a bebidas – levemos em consideração, eram anos 30, época da histeria das leis secas -, deixando a cargo do bravíssimo Capitão Haddock bom gosto pelo uísque e pelos bons vinhos. Coisas do polêmico autor, Georges Remi, dito Hergé.
Em “O caso Girassol”, é possível reconhecer um desses vinhos, um branco, de Anjou ou Alsácia, pelo formato da garrafa. Mas é pelos rótulos que se identificam duas marcas importantes de champanhe, estas em vários episódios.
Uma, a Mumm Cordon Rouge, com a mítica faixa vermelha na diagonal, aparece mais de uma vez, a primeira em “O caranguejo das tenazes de ouro”. Tintim chega a se animar e começa a abrir uma garrafa – que acaba sendo usada como arma contra os bandidos que o aprisionam no porão de um navio.
A outra, a Brochet-Hervieux, uma explícita referência do autor à sua marca favorita. Em resposta, a casa lançou uma série comemorativa, numerada, com a cena em que o rótulo entra em cartaz, no episódio “Rumo à lua”. Os exemplares ainda existentes são disputados em leilão, a preços que já superaram a marca dos 100 euros.
Em “Loto azul”, Tintim bebe chá sem parar. E, raridade, aparece com um copo de cerveja na mão, em “A ilha negra”, onde há ainda explícitas e repetidas referências ao uísque Loch Lomond. Mais uma cerveja na mesa dos Dupondt, no caso do “Tenazes de Ouro”, em que, aliás, nenhuma lata de caranguejo, objeto da história, é aberta para uma boa garfada.
Em tempo, os únicos pratos que Tintim pede ao longo dos 25 livros de sua saga são a sopa de couves do pouco conhecido “No país dos sovietes” – e que nem comeu: jogou na cabeça do oponente – e a dupla de fictícios szlazek com cogumelos e sua guarnição de spradj, em “O cetro de Otokar”. Mais cogumelos aparecem em A ilha misteriosa, mas como uma assustadora anomalia alienígena.
No mesmo episódio, Tintim alimenta-se de biscoitos frugais. Nada frugais, porém, os biscoitos belgas Delacre, lançaram, em 2011, duas séries de latas com diversas imagens clássicas de Tintim e seus amigos, inclusive o Milou, que, no filme, ganha o nome de Snowy.
Alimentando-se sem degustar, há os antílopes que caçou em “Tintim no Congo”, o frango, que Milou roubou do trem em “A ilha negra”, o pão e o vinho que surrupiou de um posto de fronteira, em “O cetro de Otokar”. Aliás, só o pão: o autor manteve a castidade do personagem estilhaçando a garrafa com um tiro providencial.
Outro tiro providencial está na capa de “O caranguejo das tenazes de ouro”, quebrando a garrafa de uísque do Capitão Haddock, que apareceria nesse episódio, pela primeira vez, como um bêbado de clichê. No mesmo livro, um “bourgogne vieux” é visto como uma miragem no deserto. Mas o autor via à forra e, mais à frente, os bandidos metralham uma adega inteira.
No mesmo livro, outro tiro, esse de um dos berberes no deserto, estraçalha uma garrafa de uísque e desperta a ira do capitão. Caberá a Milu destruir uma cristaleira inteira, nas primeiras páginas de “As sete bolas de cristal”. E à trapalhada de um dos detetives Dupondt, arruinar uma garrafa de conhaque três estrelas, em “O segredo do Licorne” – essa cena foi fuzilada do filme.
Hergé adora destruir bebidas, seus copos e garrafas: elas estilhaçam em O caso Girassol, são apedrejadas em “Tintim no Tibete”, são reviradas (duas vezes, uma delas uma garrafa de Haig) em “O país do ouro negro”, ejetadas em “As jóias da Castafiore”, proibidas em “Vôo 714 para Sydney” e ainda cuspidas em Tintim e os Pícaros – neste último episódio da série, o Professor Girassol descobre a cura do alcoolismo.
No filme, como em toda a sua trajetória, a culinária das Aventuras de Tintim é difícil de engolir. Vale mais a pena optar pelos biscoitos da Delacre ou pelo cardápio do restaurante do museu, esse sim, um alimento para os olhos.
Sensacional!
Adorei encontrar referencias ao Tintim com os comes e bebes para meu filho Bernardo que é um leitor de todas as histórias da criação genial de Hergé e vou passar para ele, com 9 anos, essas novas estórias. Parfait!
Excelente, Pedro, aliás eu digo mais: excelente!