Perdi a estréia em Paris. A cidade estava pronta para receber o filme, com as imagens da série tomando lojas, calçadas, estampas de roupas, latas de biscoito e a irresistível memorabilia de objetos relacionados. Mas tive a chance de assistir ao filme As aventuras de Tintim: O segredo do Licorne no El Corte Inglés, em Lisboa, no início de novembro.
Há duas visões para o longa-metragem: uma, a de quem não conhece ou apenas simpatiza com o personagem; a outra, a de quem é fã da série, conhece os livros e espera vê-los reproduzidos com alguma dignidade por Steven Spielberg.
Para os primeiros, o filme é uma exuberante interpretação dos traços de Hergé. Com pequenas adaptações, as características dramáticas (narigões, queixos pontudos, carecas imensas, bigodes florestais, barrigas de caricatura, mulheres sempre horrendas) são observadas à perfeição. E o filtro que garante os tons pastéis da fotografia são o transporte romântico do cineasta às pranchas do autor.
Milou, o cão parceiríssimo de Tintim ganha textura fofa e nome customizado para os americanos: Snowy. Os detetives Dupont e Dupond ganham peso e muita graça (duplo sentido), apesar do rebatismo para a tela: Thompson e Thompson. Ou the Thompson Twins.
O Capitão Haddock, tão colérico quanto generoso nos livros, é retratado como o bêbado de botequim que foi nos primeiros capítulos da série impressa. Mas ganha as tintas do ser voluntarioso e de vasto (e impagável, e erudito…) repertório de insultos contra os inimigos. O personagem brilha no filme sobre a pele do ator Andy Sirkis, que está irreconhecível ali, como esteve no Caesar, protagonista da última versão do Planeta dos Macacos, e no sinistro Smeagol, de O Senhor dos Anéis.
Vale o registro, aliás: Peter Jackson, diretor do próprio Senhos do Anéis, foi produtor e responsável pelas reproduções e efeitos especiais de As aventuras de Tintim. E já foi confirmado pelo próprio Spielberg como diretor da seqüência, que ainda não tem título definido.
Mas, hélas! Para quem é fã da série e espera álguma fidelidade com o roteiro original, o filme é uma arrasadora decepção. Ou, pelo menos, um grande desconforto. Começa bem, até, com o próprio roteiro de O segredo do Licorne em adaptação fiel ao livro original. Depois de meia hora de filme, porém, a impressão que que se tem é a de que Steven Spielberg interrompeu sua leitura do livro. Ou de que sequer o leu, apenas recortou as figurinhas.
Pois bem, do nada, o filme passa a reproduzir, também fielmente, outro livro, O caranguejo das tenazes de ouro – sem relação com o primeiro, mas no qual Tintim conhece o Capitão Haddock. Na terceira parte, a trama toma um rumo que Hergé nunca imaginou, com sequências rocambolescas, patéticas até para um desenho animado, irreconhecíveis, enfim, para quem leu os originais. Salva-se a sequência estonteante da batalha naval entre o Licorne e o navio pirata, que o roteirista salvou da seqüência original.
Mas as discrepâncias não param por ali. Quem conhece os personagens, vai se surpreender em ver o emir do episódio O país do ouro negro como proprietário de um dos modelos do Licorne – são três as réplicas do navio pirata, que, juntos, desvendam o mistério. E vai se assustar em ver a soprano Bianca Castafiore como chave do roubo dessa réplica.
No fim Steven Spielberg tenta livrar-se do rolo em que se meteu com um salto gigantesco no roteiro até a última página da saga do pirata Rackam, o Terrível, interpretado por um também irreconhecível – e sub-aproveitado – Daniel “James Bond” Craig. Poderia ser qualquer um, mas vale o gimmick.
Os bandidos originais (os irmãos Loiseau) são ignorados. E um dos personagens fundamentais da trama original, o Professor Girassol, sequer é mencionado, assim como fica ignorada TODA a viagem em busca do tesouro, seja a bordo do navio, na ilha do tesouro ou do espetacular submarino em forma de tubarão, a bordo do qual Tintim encontra o verdadeiro Licorne, no leito do oceano.
Enfim, é como se, no futuro, alguém refilmasse Spielberg e fosse além das imaginações, costurando cenas de E.T., Tubarão e Lista de Schindler, dando-se à liberdade de usar personagens de Soldado Ryan e das séries Indiana Jones e Jurassic Park.
Mas Spielberg tem o toque de Midas do cinema e, mesmo com toda a farsa sobre o tema, ele já amealhou mais de 100 milhões de reais – motivo pelo qual ele já sonha com a seqüência, mas sem ainda divulgar qual (ou quais) dos livros vai tentar reproduzir. Os rumores apontam para a série Sete bolas de cristal / O Templo do Sol. A conferir.
E agora com esse material o Bernardo vai ficar ainda mais entusiasmado em seguir os passos das estórias e do filme do Spielberg que será lançado no Brasil.Viva Tintim
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