Curando tudo

[24 jan 2012 | Pedro Mello e Souza | Um comentário ]

Presunto cru (Foto: Adriana Lorete)

Os léxicos afirmarão: todos os sinônimos para o verbo curar levam ao conceito de pureza. No caso da culinária, a cura vai mais adiante e revela um processo que, além de conservar os alimentos em que atua, confere paladares, afina textura e apura sabores como poucas técnicas de cozinha lograriam. Fumaças, sais, sumos ou mesmo os ventos dão conta da simplicidade que transformam as carnes curadas em algumas das mais prezadas especialidades das cozinhas de todos os tempos.

 

Bacon

Bacon e ovos: feitos um para o outro.

Tecnicamente, é o toucinho de porco defumado e cortado em tiras. O que tornou-se um dos ícones da culinária inglesa e um dos baluartes da conquista do oeste americano, é hoje um dos ícones do english breakfast. Mas é, acima de tudo, um recurso apreciado para garantir a suculência de carnes assadas, que são literalmente embrulhadas em camadas de bacon. De todas as especialidades desta relação, é a que mais apavora médicos e nutricionistas.

 

Beef jerky

Expressão usada como sinônimo americano da carne seca brasileira. Não o é, e por vários motivos. A nossa leva gordura; a deles é limpa. A nossa é salgada; a deles leva um sal ocasional. A nossa é mais úmida; a deles é bem mais seca e própria para ser mantida como ração de guerras, da Civil às Grandes Guerras. Além disso, a palavra advém do espanhol charquí, lá usada para definir os produtos à base de búfalo, que os indígenas usavam para preparar o pemmican e que, mais tarde, teria o rebanho bovino como matriz.

 

Bellota

Diz-de do presunto (jamón) ibérico preparado com porcos alimentados, a partir de certa idade, com a bolota de carvalho.

 

Biltong

Versão sul-africana da carne-seca, é um petisco preparado com tiras de carne de boi ou de caças (antílopes, búfalos), que são cortadas em tiras e marinadas em sal e vinagre, antes de serem secas ao vento. Recentemente, uma variedade industrial fez sua incursão em alguns supermercados brasileiros. Rija, deve ser mascada e acompanhada de cerveja gelada, que lhe atenue o sal.

 

 

Bottarga

Ou poutargue, como preferem os franceses – ambas as expressões advêm do árabe bttarkh’ (ou buttarih, segundo a Academia Francesa). Em qualquer caso, são as ovas salgadas, prensadas e enceradas de peixes como a tainha (‘muggine’) e de uma variedade mediterrânea de bacalhau (‘molva’). No caso dos sardos e dos sicilianos, as ovas preferidas são as de atum. Herança dos fenícios, que a espalharam por todo o Mediterrâneo, e registrada por Rabelais em “Pantagruel”, é servido como antipasto (Toscana, Sardenha e Veneto) ou tapa (Catalunha, Valencia e Andaluzia), prato cerimonial (Córsega) ou principal (região de Marseille e portos da Tunísia). Em pasta ou ralada, compõe molhos para peixes, terrines, arroz, ovos, massas ou canapés. Inteira e mais consistente, pode ser fatiada e servida como aperitivo com pães torrados. A rigor, todo porto pesqueiro, inclusive na Ásia e na Américas (no Brasil, há produção comercial em Santa Catarina), tem a sua versão de botarga, a partir de ovas de peixes locais.

 

Creme de batata com bottarga, de Roberta Sudback (Foto: dela mesma)

 

Bresaola

Presunto de carne de boi curada em salmoura, vinha d’alhos e especiarias como o cravo e a canela. É servido em fatias finas como a de um carpaccio, temperada apenas por um fio de azeite extra-virgem. Os cardápios internacionais dedicam-lhe uma guarnição de folhas de rúcula. É uma das mais antigas das carnes curadas e sua preparação está citada nos apontamentos de um guarda-livros do século XV, em que acusa a compra de uma rês para o específico fim de preparar uma “carne salata”. Recentemente, o Brasil tornou-se um dos fornecedores de carne para a bresaola, em função dos abates forçados pela pandemia européia do “mal da vaca-louca”. A área típica de produção da iguaria, nas regiões de fronteiras com a Suíça, a carne assume a denominação viande de grisons, embora os puristas afirmem tratar-se de algo diferente, de identidade própria.

 

Bresaola semi curada (Foto: Nicola Massa)

Carne de sol

Variedade de carne-seca de salga e desidratação mais baixa do que as demais. Produzido com carnes traseiras de carne bovina ou, raramente, a caprina, é salgada com sal fino e deixada não ao sol, como sugere a denominação, mas em lugares cobertos e arejados, mas de clima muito seco, como o de algumas regiões do interior do Nordeste. O resultado é uma carne levemente curada por fora, o que mantém o interior ainda suculento, graças a perdas de apenas 35% de água – contra mais de 50% dos charques – permitindo cortes como os de bifes tenros. Presta-se ao preparo de pratos populares em todo o nordeste, como a farofa, a paçoca, o ‘baião-de-dois’ e o ‘arrumadinho’, ou ao corte de bifes, para o serviço com aipim, farinha, ‘guariroba’ ou ‘creme de arroz’.

 

Carne seca

Também conhecida como charque, é a carne de boi conservada pela ação do sal e do sol e própria para a jornada dos tropeiros, tal como ocorria nas rotas do ciclo do minério, no século XVIII. O modelo nordestino, mais conhecido como carne de sol, proporciona belos bifes grelhados para acompanhar purê de arroz e farinha com manteiga de garrafa, farofas e paçocas inesquecíveis e guisados, como no caso do jabá com jerimum. A fórmula de carne seca da região Sudeste e parte da região Sul é reconhecida oficialmente após perder um mínimo de 50% de água. E gera pratos como a carne seca à mineira, acompanhada de tutu e couve refogada, o barreado paranaense e o feijão de tropeiro. Em iscas fritas com cebolas ou aipim é excelente aperitivo para acompanhar a cerveja gelada e tornou-se um clássico da cozinha de botequim do Rio de Janeiro.

 

 

Serviço de carne seca, do Antiquarius (Foto: Simone Marinho)

Ceviche

Iguaria à base de peixes curados em sumos de limões ou laranjas amargas, pimentas e alhos. Muito embora a fórmula seja atribuída aos peruanos, a origem está no espanhol escabeche (do bessárabe as-sukabag) e o vinagre é, originalmente, o agente de cura dos peixes – tal como acontece, aliás, com o já esquecido escabeche brasileiro. Mas é mesmo a onda peruana, especialmente a do chef Gaston Acurio, que trouxe a badalação em torno da iguaria, que é guarnecida com raízes e milho – e servida com garfo (às vezes colher) e faca. O caldo que sobra no fundo do prato, real agente da cura, é considerado um breve contra a ressada e conhecido nas ruas boêmias de lima como “leche de tigre”.

 

Ceviche de robalo, de Checho Gonzalez

Coppa

Corte do pescoço e do cachaço do porco, que é enrolado e curado em vinha d’alhos e especiarias e deixada a secar. Dependendo da região, a fórmula envolve também a defumagem e até o cozimento da carne, que é, via de regra, degustada como petisco. .

 

Culatello di Zibello D.O.P.

Culatello

Membro da extraordinária família dos frios italianos, é uma variedade de presunto extraído de uma parte magra do pernil do porco e banhado diversas vezes em vinho, antes de ser laminado e degustado em sanduíches e antipastos. Há relatos de que era uma tradição do séculos 14 e 15 presentear os noivos com um culatello – e um deles teria sido oferecido a Andreia dei Conti Rossi, em 1332, na sua festa de casamento; e outro, a Galeazzo Maria Sforza, em seu matrimônio com Dorotea Gonzaga, em 1466. A iguaria está citada no compêndio Historia della città di Parma, de 1591. Mas somente em 1735 surgiria o primento descrição oficial da iguaria, em documento da Comuna de Parma. O Culatello di Zibello tem a denominação protegida pela União Européia desde 1996.

 

 

Confit

Diz-se de toda a carne que é cozida lentamente em alguma gordura, de preferência a própria, como é o caso do pato, do ganso e do porco. O resultado é o sabor intenso e a textura aveludada que a cura na gordura confere aos itens usados. No Brasil, até que a preservação e as sanções do Ibama falassem mais alto, a técnica subsistia no Norte, mas com carnes de tartaruga ou peixe-boi, que eram conservadas em suas próprias carcaças imensas. Como todo verbo no particípio que se preze, varia conforme o gênero do ingrediente: o pato é confit. A coxa do pato é confite.

 

Defumado

Diz-se do alimento curado em fumaça de cinzas ou serragens de madeiras, que lhe imprimem seus paladares específicos, além de selar-lhes a superfície contra a oxidação e livrá-la das bactérias. É uma técnica milenar, usada na conservação de peixes do mar do norte (salmão, arenque, hadoque) carnes e embutidos de porco (bacon, coppa), que é adotada, hoje, para aromatizar ingredientes diversos, como aves, queijos e legumes. Uma das técnicas ancestrais dos índios brasileiros, o moquém (étimo da palavra ‘moqueca’) é uma técnica de conservação por fumaça e calor.

 

Kani

Genericamente, é como o caranguejo é conhecido pelos japoneses. Mas no combinado mais próximo, o kani é a abreviatura de kanikama, marca registrada de um surimi (すりみ), conserva prensada de carne de peixes (cavalas, albacoras), que é aromatizado e colorido de forma a simular a carne fina e adocicada do caranguejo original ou de outros crustáceos, como o camarão e a lagosta. Fora desses formatos, o kani é também a base de duas especialidades japonesas, o bolo kamaboko e o embutido chikuwa.

 

Lard, lardo

Salgado de largo uso entre franceses e italianos, é uma camada de gordura do porco, de cor muito branca, sem os entremeados de carne, que o caracterizariam como ‘bacon’. É salgado, defumado ou usado cru e acompanha pães, guarnece ovos ou aromatiza carnes e pratos cozidos. O Lard d’Arnad, do Vale de Aosta, enverga selo DOP desde 1993. Já o lardo di Colonnata, reconhecido em 2004, é produzido apenas em torno da pequena comunidade toscana de Colonnata, próximo às marmorarias de Carrara. Mesmo com toda a proteção da lei, alguns espertalhões cariocas andaram falsificando e servindo um pobre similar sob a sua denominação de origem.

 

 

Lardo di Colonnata (Foto: Rainer Zenz)

Lox

Do alemão arcaico “lachs”. Salmão defumado e levemente salgado, consagrado pelas leis da culinária kosher, e imortalizado como iguaria para aperitivo, recheio de sanduíches e acompanhamento de saladas, temperado ou não com aneto e guarnecido ou não pelo insuportável Philadelphia Cheese.

 

Pastrami

Peito de boi marinado, defumado e cozido, que se tornou um mítico recheio de sanduíches imensos, estarrecedores, das delicatessen americanas, especialmente as de origem judaica. Na Europa, é comum em toda a faixa que cobre a Romênia, os Bálcãs e as regiões montanhosas de Armênia e Geórgia, onde é conhecida como ‘basturma’. A própria palavra popularizada na América tem origem ídiche sobre variação do romeno pastrama. A apelação, hoje integrada ao universo culinário do norte da Itália, exige a cobertura de uma pasta com base de sal e condimentos como alho e pimentas diversas, que lhe imprimem força, e toques como o cravo e a canela, que lhe conferem doçura.

 

 

Sanduíche de pastrami, do Kats Deli, Nova York

Pi dan

Orignalmente, 皮蛋, é a denominação oficial do mítico “ovo dos mil anos”, uma conserva de ovo de pata, que é envolto em uma camada de barro salgado (terra, sal, farelos de arroz) e, eventualmente, enterrado por um mínimo de três semanas. O resultado é um dos emblemas do lado obscuro da grande lua que é a culinária chinesa – distante e com lados ainda desconhecidos; a consistência é como a de um ovo cozido comum, mas a clara torna-se gelatinosa e castanha-escura e translúcida, enquanto a gema torna-se uma massa que varia do verde escuro ao preto. É uma iguaria que pode ser preparada em casa, com misturas pré-prontas, ou ser adquirida nas boas casas do ramo. O sabor forte, para muitos insuportável como o de um queijo diabólico, faz do ‘pi dan’ um acompanhamento ideal para o mingau de arroz (‘jook’) e omeletes, embora os apreciadores o degustem puro, com gengibre. Originalmente, a receita é aplicada a ovos de pato, que, pela porosidade da casca, dura menos do que os ovos de galinha, mas absorve melhor quaisquer sabores em seu contato, tornando-o ideal para a aplicação da técnica secular.

 

Presunto cru

Universo das finíssimas peças da perna traseira dos porcos, que curada com sal, e, dependendo da região, especiarias ou outros conservantes. É pendurada e deixada a secar por períodos que vão de uma a três anos – o tempo multiplica o seu preço. Somente a Itália tem 5 presuntos regionais sob a denominação prosciutto, entre eles o de Parma. O veneziano San Daniele ainda persegue sua certificação. Não menos badalados, os presuntos espanhóis envergam uma série de denominações oficiais (Teruel, Huelva, Los Pedroches, Dehesa de Extremadura), menos conhecidos do que os populares pata negra, bellota e ibérico – protegidos com o selo DOP. O francês orgulha-se de seus jambons de Bayonne e des Ardennes, o alemão, de seus secos de Holstein e da Floresta Negra e, os portugueses, de seus presuntos de porco preto do Alentejo (DOP) e os de Barrancos, Vinhais, Barroso, Campo Maior e Elvas.

 

Speck

Denominação tirolesa de presuntos desossados e curados por austríacos (tiroler speck) e italianos do Alto Adige, no extremo norte do país. Difere do prosciutto por ser desossado e defumado. É degustado como petisco ou usado como uma carne salgada em receitas de massas e risotos.

 

 


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