O Barca Velha e eu

[10 fev 2012 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

Barca Velha, o rótulo

 

O que vou contar pode soar estranho à leitura laica. Mas pra quem entende – e gosta -, o depoimento é lisonjeiro até para um rótulo nobre como o Barca Velha, que, descobri, está completando 60 anos de existência.

 

Era uma degustação vertical do vinho Barca Velha, que Antonio Campos, hoje na Zahil, promoveu no Palácio da Cidade para uma exclusivíssima platéia de 15 pagantes e uma mesinha de jornalistas. As quantidades eram mínimas e a chance de eu provar um deles era nenhuma. Até que o desinteresse de um dos presentes exigiu que eu maculasse a minha honra com a terra de antigos aluviões do Douro.

 

Comemorava-se o lançamento da safra 1999 do vinho que, até hoje, é considerado por alguns como o mais importante de Portugal. Além dela, estariam à prova os anos de 1991, 1985 e 1964. Os anos de 1991 e 1995 já eram raríssimos; o de 1964 está praticamente desaparecido. Nos restaurantes, a safra de 85 dificilmente seria encontrada por menos de 2.500 reais.

 

Jorge Lucki comandou a apresentação – brilhante – e citou, em sua pesquisa histórica, nomes como as da cinsault. Um jornalista veterano, conhecido pelos apartes eruditos e pela impostação de seu barítono machadiano, virou-se e trovejou, sem pedir muita licença: “Essa região é uma das mais influentes dessa época”. Sem um traço de perturbação, sem desviar o olho do quadro que projetava, Lucki emendou: “Não é uma região, é uma uva”.

 

Enfim, prestava eu assessoria ao evento e, longe das mesas, via cada garrafa se esgotando, gota a gota. Mas notei que um dos convidados não tocava em seu vinho. Ele apenas aproximava o nariz, imitando os companheiros de mesa, quando o apresentador assim sugeria, para conferir aromas e complexidades.  Conclusão rápida: não gostava de vinho e estava ali sem noção do que se passava.

 

Em vinte minutos, a degustação se encerrava e todos passaram para a belíssima mesa do almoço. O tal sujeito foi um dos primeiros a sair. Antonio me chamava para juntar-se ao grupo. “Já vou”, despachei. E, placidamente, com o salão vazio, sentei-me diante dos copos intocados e, na cronologia de cada rótulo, cumpri a degustação. Quem não fizesse o mesmo, que atire a primeira rolha. Ou reduza o Red Bull em seu ice vodka.

 

Seis anos depois, dezembro passado, o sommelier Robson põe um copo de tinto na minha frente, no Esplanada Grill. De outra mesa, o Roger espiava pra ver qual era minha reação. Não conseguia tirar o nariz do copo. O gole era pequeno, como na degustação, e sorvi devagarinho, beijo a beijo. O vinho era grande e coube nesse breve espaço de beijar. Só soube que era um Barca Velha quando fui agradecer não só o carinho como a lembrança que me veio, como em uma versão tropical da madeleine de Proust.

A gentileza do Roger: o Barca Velha 95

 

De volta à lida, procurei a documentação que preparei na época. E que prometo enriquecer, para fazer jus ao rótulo.

 

“O mais renomado vinho de Portugal”, são as palavras do crítico Hugh Johnson para definir o vinho Barca Velha. As origens estão na decisão de uma das mais importantes mulheres do mundo do vinho, Dona Maria Adelaide Ferreira, dita a Ferreirinha. Em 1877, já à frente da vinícola que batiza, ela arrematou baldios no Concelho de Foz Côa. Dez anos depois, no chamado Talhão da Barca Velha, ela iniciava o cultivo da vinha na vizinhança.

 

O primeiro Barca Velha surge da safra de 1952, após mais de dez anos de trabalho de Fernando Nicolau de Almeida, diretor técnico da Casa Ferreira, cargo que herdara do pai. Sua maior luta não foi contra intempéries ou safras, mas contra a resistência de se produzir vinhos de mesa no Douro, um tradicional produtor de vinhos do Porto. Almeida faleceu um ano antes da mais recente das safras do vinho que criou. Em 1979, a Casa Ferreira adquiriu a Quinta da Leda, onde as safras mais recentes do Barca Velha são colhidas.

 

Há 60 anos, o Barca Velha é elaborado com uvas selecionadas no Douro Superior. Em seu corte predomina a casta tinta roriz, apoiada em touriga nacional, touriga franca e tinta barroca, todas provenientes da Quinta da Leda, de vinhas adjacentes e de zonas altas da região. Os vinhos que potencialmente criarão um Barca Velha são transportados para Vila Nova de Gaia, imediatamente após a maceração, e iniciam a sua “élevage” ou maturação durante cerca de um ano a um ano e meio, dependendo do lote.

 

O processo acontece em vasilhas de madeira de carvalho novo francês, com 225 litros de capacidade. O Barca Velha é elaborado com base na seleção dos melhores lotes, selecionados depois de inúmeras provas e análises efetuadas durante a maturação.

 

 


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