“Eu cuidarei de seus pratos e de seus copos”. Começava assim, na decisão patriarcal de Eric Beaumard, vice-campeão mundial de “sommelerie”, quatro horas alucinantes de uma ainda curta vida de gourmet. Minto. A alucinação começara antes, na chegada ao hotel George V, na avenida do mesmo nome, travessa da Champs-Elysées. Já tinha ouvido falar da reforma de 1999, que modernizou a estrutura, mas conservou – e realçou – a beleza do prédio e de seu estilo neoclássico de 1928. Mas o espetáculo estava no contraponto da arquitetura com os detalhes contemporâneos, especialmente os arranjos do “flower designer” Jeff Leatham. É coisa do próximo século.
A chegada ao restaurante não foi diferente. Na entrada, o salão abre-se com um pé direito digno de uma Versailles, com direito a ala de lustres, espelhos e quadros de mestres do século XVIII. Estaria em pleno Petit Palais se não fosse chamado de volta à realidade por Vincent, um dos sommeliers da casa, destacado especialmente para me expor cada ingrediente, condimento, técnica e harmonia. Por mim, já estaria tudo explicado pelo aperitivo, uma taça de champanhe rosé Pommery 99 acompanhando dois pequenos profiteroles salgados com recheio de “mâche”, quase um agrião, derretido no vapor.
Era o cartão de visitas de Philippe Legendre, responsável pelas estrelas (ou, em francês, ‘macarons’) mais rápidas do Guia Michelin: três em apenas sete anos.
À minha volta, mesmo sendo almoço, todos estavam de terno e gravata, dos indianos à minha frente (as mulheres, com os saris mais chiques de Paris) ao punk à minha direita, sozinho, livro na mão, com seu cabelo verde e espetado como o de uma piaçava, que combinava com a gravata de cor menta. Do lado dele, mais vasos com arranjos espetaculares de flores. Seriam ramos de guaraná? Vincent me interrompeu de novo, dessa vez com um Madeira 89. No prato retangular, que nem vi chegar, um charutinho de castanhas assadas com azeite trufado.
Quase sem intervalo, chegou um prato largo e fundo. No centro, delicadíssimas ostras de Marennes (era época) cozida sem exagero em chá verde e raspas de cidra, a mesma fruta do doce mineiro. Textura e sabores de envergar. O casal ao lado tinha pedido o mesmo. Reparei que discutiam negócios com fúria contida e recatada. Interromperam. Provaram. E deram-se as mãos.
Chegou outro prato fundo, fechado com um tímbalo. Esse, o chef sommelier Thierry Hammon fez questão de abrir pessoalmente. Era um pequeno enrolado de tagliolini coberto com raspas generosas de trufas brancas de Alba – também era época. Que me perdoe o Vincent, mas ali o nem o Barbera (também de Alba) que me serviu nem qualquer outro vinho superaria a intensidade dos aromas e do paladar daquele prato.
Ia falar dos pães, das duplas de manteigas e de sal de Guérande, do óleo toscano “millésimé” do couvert, mas fui novamente interrompido nas notas em que tentava, em vão, registrar tudo o que acontecia. Era a chegada um trio de vieiras com lentilhas de Puy e mais trufas, dessa vez, as negras do Périgord. E o meu jovem sommelier, que sentira o golpe anterior, foi à dupla forra: primeiro com um Vouvray 2004; depois com o Puligny Montrachet 2002, que acompanhou um fricassê de lagostins da Bretanha, que viria a seguir.
Estava pronto para dar a maratona por encerrada, quando chegou um assado de palombes, uma variedade de pomba do sul da França. A variedade que preparam, explicaram-me, não é dos Pirineus, mas de Landes, onde voam com o vento a favor, o que deixa a carne com uma maciez extraordinária. Brindei ao requinte da informação com um Cornas 2002.
Fiquei de perguntei se as colunas do salão eram de mármore e se o tapete era um gobelin, mas a chegada de um carrinho com mais de 30 tipos de queijos me desconcentrou. Confabularam lá entre eles e decidiram-se por uma seleção de cinco variedades. Para cada um, o seu vinho. Olímpico, não expressei meu estarrecimento e acompanhei a aula do mestre “fromagier”, sobre as variedades, suas harmonias o pão especial que acompanhou. Anotei tudo, mas cito o camembert envelhecido com um tinto do Languedoc e o fourme d’Ambert com o Tokay Aszú, último pedido antes de qualquer execução.
A contagem elevava-se a onze copos em duas horas, mas sequer afrouxei a gravata diante das duas pré-sobremesas: um gâteau basque quente e uma pina colada gelada, além da bênção de um Riesling Auslese Toni Jost 2001; e uma seleção de chocolates, entre eles um arco-íris castanho de mousse, “crumble” (cascalho crocante) e sorvete. Rivesaltes Tuilé 88 e não se fala mais nisso.
Fiquei pensando nesses vinhos todos e me lembrei de um programa no GNT que falava na adega extraordinária, a maior do mundo, de um restaurante de hotel de Paris. Seria aquela? No mesmo momento, Eric Beaumard volta e anuncia: “o senhor está sendo aguardado na nossa adega”. Era a própria.
E lá fui eu, carregado como um cego, aos subterrâneos de Paris, quatro andares abaixo, via elevador com senha para poucos. “Aqui é a série de todos os Haut-Brions, ali, quatro décadas de Romanée” e por aí foi, ao longo de cerca de 40 mil garrafas. “Aquela parede ali foi erguida para proteger a coleção dos nazistas”, explicou Vincent, mostrando preciosidades salvas, entre eles um Château d’Yquem de 1895. De tão impressionante, não dava nem para me emocionar.
Na saída, quatro horas de encantos depois, Eric ainda brincou: “quer comer mais alguma coisa?”. Fiquei devendo a resposta.
31, Avenue George V
8ème Arrondissement
Paris
France
Tel.: 33 (0) 1 4952-7000
www.fourseasons.com/paris/
Já perdi a conta das vezes que li esse almoço…. Só penso no dia em que estarei lá, ao vivo e a cores (das flores).
seria impertinência perguntar o preço?
Rapaz, bateu amnésia…
Muito sinceramente, tudo o que tem vento a favor é ótimo, mas esses franceses descobrirem que o vento pode fazer um prato mais gostoso ė, no minimo, delicioso de se ler…..
Magnifique Talheres