Criatividade dos chefes, frescor dos ingredientes e uma tecla firme na tradição, dão novo ritmo à gastronomia lisboeta.
Texto e fotos: Pedro Mello e Souza, especial para o Caderno ELA Gourmet, do Globo
Crise? Que crise? Tente fazer uma reserva em algum dos restaurantes contemporâneos de Lisboa e tenha a primeira surpresa que essa nova linha da gastronomia portuguesa nos traz: estão lotados. Mesa para grupo, só por milagre. Ou com o uso de seu prestígio – e alguma antecedência – para conhecer as demais surpresas que os novos chefs lisboetas nos trazem nessa autêntica versão remix dos restaurantes da cidade: ambientes descontraídos e animados, frescor nos pratos, juventude na clientela, carta de vinhos bons e baratos, rodízio entre garçons poliglotas e DJs atualizados. E, maior de todas as surpresas, pouco ou nenhum bacalhau.
Um dos ícones dessa nova visão pop dos restaurantes de Lisboa é o SeaMe, no Chiado. Intitula-se “peixaria moderna” e a impressão já está na entrada, com uma instalação pós-moderna na fachada: só areia, conchas e um manequim de vitrine vestido somente com um lenço e um cesto na cabeça. Um bar longo, um lounge de espera e uma cabine de DJ, que assume logo que o sol se retira levam ao fundo, a peixaria em si, com espécies que pouco se vêm, seja para a peixada, seja para o sushi. Para harmonizar com vinhos brancos em taça como o Encruzado de Julia Kemper, o Arinto de Felipa Pato e o onipresente alvarinho Soalheiro, tem cantaril, tem trilha, tem ruivo, tem canilhas e, claro, tem lingueirões. Não reconheceu nenhum? Dirija-se ao glossário no fim dessa matéria.
Aliás, faça melhor: recorte esse glossário e leve-o consigo para ir a outra referência bem moderna: o Cantinho do Avillez, também no Chiado. Lá, entendemos que o patudo é um atum açoriano de maciez extraordinária; que o queijo de Nisa é um concorrente à altura do Serra da Estrela; que as vieiras, grandes como nossos medalhões de filé, casam felizes com abatata doce de Aljezur, uma das mais novas denominações de origem reconhecidas pela União Européia. E conheceremos, ao vivo, a performance de um dos chefs mais badalados de Lisboa: José Avillez. Começa com ele a conexão entre o moderno e o tradicional, com as suas versões de prego no pão (sanduíche de filé), de hambúrguer de carne barrosã certificada, com as “avelãs ao cubo” (espuma, sorvete e ganache) e as esferas de “azeitonas explosivas” para acompanhar o único bacalhau desse roteiro – em lascas, curado e servido com gema de ovo. Detalhe: o próprio Avillez, egresso do über famoso Tavares, assina também os seus próprios vinhos, o JA e ao Paisagem, ambos produzidos na nova região vinícola de Lisboa, antes conhecida como Estremadura. Eles dividem a carta com tintos igualmente modernos, como o alentejano Herdade do Rocim.
É difícil conversar com o chef Henrique Mouro, do restaurante Assinatura. Ainda com o ambiente vazio, ele já trabalha, de pinça na mão, em uma intensa linha de montagem dos menus degustações que mostram o lado remix de Lisboa: a fusão com a tradição. No ambiente de decoração que remete ao new romantic dos anos 80, prova-se uma autêntica aula de cozinha portuguesa repaginada com a moxama de atum (olha o glossário aí…), a flor de abobrinha empanada com recheio de caracóis, o presunto de pato mudo com lamelas de foie gras, a imensa perna de polvo estufada e servida com um suspeito mas eficiente molho de maracujá. Finalmente, uma versão espetacular de um arroz de rabada com ovo caipira e a sardinha assada sobre tomates defumados. Paarecia uma barra de prata, ao ser servida com um Atalaya 2007, rótulo que cruza castas inesperadas para uma região como o Douro: a malvasia e o encruzado.
Quem se assombra com a sardinha de Henrique Mouro, vai se encantar com a versão que Alexandre Silva preparou no seu restaurante, o Bocca. No mais chique e minimalista dos ambientes desse roteiro, o restaurante dá a opção de carta, mas o menu degustação é claramente a melhor opção. No preço, inclusive: 52 euros por pessoa, mais 20 euros para um copo de vinho harmonizado com cada prato. O peixe veio cru, enroladinho e guarnecido com uma salada alentejana feita em gaspacho e com um dos elementos da moda, em Lisboa: o carvão de choco – ou a lula crocante na própria tinta. Em placa de ardósia, uma saladinha de frutas vermelhas com espuma de bacalhau (ok, mais um…), brotos de shiso e uma alga chamada salicórnia. O tartare de carne barrosã, sempre ela, veio com gotas de gemas em gel, preparadas a 60 graus, folhas de arroz e um sorbet de hortelã. Touriga e alfrocheiro, um mix de castas tintas do norte e do sul nesse rosé do Dão. Para os enólogos, mais um remix, no Senhor d’Aldraga 2009 (alvarinho, arinto, chardonnay e riesling, oh, Jesus!) para acompanhar o pregado, uma versão do linguado imensa no tamanho e no paladar. O mais fino vem de onde menos se espera: o cachaço de porco, que se derretia na boca.
O atrevimento do chef Ljubomir Stanisic está logo no primeiro prato do restaurante 100 Maneiras: ele mandou montar uma armação em mental e simular, como pequenos pregadores, o ícone do Bairro Alto, os varais que cruzam as ruas estreitas, de um prédio ao outro. No lugar das roupas, chips de dobradinha de bacalhau. De tremer de bom. Choramingar por uma segunda porção é inútil, pois a casa só oferece menu degustação. Como todas as demais, estava lotada. Me compensaram com uma segunda taça de alvarinho Muros Altos, que chegou junto com um copinho de aveludado de cogumelos com creme azedo e um cannolini de queijo de cabra. Um prato fundo, um pó de morango com crumble de broas acompanham o tartare de sarrajão (cadê esse glossário, ó menino?) com ovo de codorna pochê e regado com um gaspacho de tomates. No salão, os irmãos Licínia e Felipe, em inglês impecável, atendiam, sozinhos, a mais de 30 clientes. E ainda administravam as chegadas, ofereciam os vinhos, limpavam a mesa. O inglês era necessário, pois no bar tínhamos um britânico e uma nepalesa. Seriíssima. E veio o enrolado do mar, um medalhão em massa com lagosta, camarão, toucinho e piso de coentros, rebatendo com um branco, o Redoma Reserva 2010, da casa Niepoort. Ouro puro. Douro puro.
Sim, quem pensa em culinária portuguesa, pensa em fartura. E o chef Rafael Sá, que estava à frente do 100 Maneiras naquela noite não parava: vinha carpaccio de pato e de foie gras, uma tapioca de couscous com robalo, pargo e vieiras salteadas e, finalmente, a única carne disponível na casa: um javali servido com uma batata feita como no bacalhau à Gomes de Sá. Mas sem o bacalhau. Genial. Na sobremesa, o próprio chef flamba no balcão: um ananás ao forno com espuma de coco. E um notável arroz de leite com frutas frescas, como convém às novas fórmulas das sobremesas antigas. Afinal, por trás de toda a versão remix, há sempre um belo tema original.
Um pequeno dicionário de todas as delicadezas nessa matéria está no post Lisboa Extended Remix…
E, abaixo, a capa da matéria na edição do jornal.
Excelente post! adorei os artigos, especialmente o do Bocca onde trabalhei durante 3 anos desde a abertura até Setembro de 2011, um site obrigatório para todo o gourmet que se preze…
Sem comentários….
Linda matéria!