O dicionário dos cogumelos

[14 mar 2012 | Pedro Mello e Souza | 4 comentários ]

Cogumelos de Paris (Foto de Krol Villela)

 

Conta a lenda – e o que seria da gastronomia sem as lendas? -, em uma tarde cinzenta da Paris do início dos anos 1800, um homem perseguido pela temível polícia de Napoleão embarafustou-se nos labirintos de uma caverna da região. Fechadas as saídas, o pobre fugitivo foi dado como morto após alguns dias, e os policiais levantaram o cerco. Mas eis que o personagem emerge, salvo e, principalmente, são. O milagre foi creditado aos cogumelos, que cresciam aos milhares na umidade escura do subsolo e forneceram nutrientes – proteínas e vitaminas B, C, K – para que o cidadão pudesse viver as alegrias de uma França arruinada pela Revolução.

 

Verdade ou não, o episódio é uma forma de ilustrar como os cogumelos, além de nutritivos na estrutura e graciosos na forma, tomaram o imaginário da história, dando um paladar especial a tradições seculares. Entre os orientais, especialmente chineses e coreanos, é símbolo de longevidade. Entre os nobres medievais, ter um cogumelo em seu brasão sugeria a virilidade dos homens de suas linhagens.

 

Mas há o lado lisérgico dos cogumelos, alguns deles ligados a temas supostamente infantis. O chá de um deles teria inspirado o matemático inglês Lewis Caroll na concepção do roteiro psicodélico de “Alice no País das Maravilhas”. Personagens como SuperMario vive às voltas com uma série de cogumelos. Os “smurfs” moravam em cogumelos. E Tintim foi atacado por cogumelos explosivos em “A estrela misteriosa”.

 

A relação dos cogumelos com os gourmets é milenar. Mas a produção voltada para a cozinha não tem mais de 300 anos, o que mostra que suas inúmeras espécies foram as últimas a ser conquistadas pela agricultura. As técnicas para reproduzir o ambiente de manifestação destes fungos comestíveis permitiu a popularização do ingrediente, apreciados desde gregos e romanos. E pelos chineses, que colhem uma safra brutal – dez vezes maior do que a americana, segunda colocada – graças a uma tecnologia que a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) está prometendo trazer para incrementar a miserável produção brasileira.

 

Da produção global de cogumelos, o chamado ‘champignon de Paris’ domina 90% do total colhido no Ocidente. O restante divide-se entre espécies antes disponíveis pelo esforço dos caçadores, como ‘cèpes’ e ‘porcinis’, ‘chanterelles’ e ‘morilles’, ‘mousserons’ (que gerou o inglês “mushroom”) e as ‘amanitas’. Ou as espécies orientais, como o ‘shitake’, o ‘maitake’, o ‘shimeji’ e o finíssimo ‘enokitake’ começaram a dividir a audiência dos cardápios mais finos, a partir dos anos 80.

 

Ferran Adrià e seu "ceps de crocant de ceps" (Foto: Francesc Guillaumet)

 

O DICIONÁRIO DOS COGUMELOS

 

Amanita

Amanita cesarea. Palavra de origem grega – αμανίτα – que define o gênero de cogumelos de forma semelhante à dos champignons, maiores e de chapéu de um alaranjado-vivo, que devem ser colhidos com critério, pois espécies comestíveis e venenosas se confundem. Os romanos já dominavam esse critério e o manipulavam de formas espúrias, como no caso de Agripina, que os misturou para servir e matar o marido, o Imperador Claudius, e permitir que seu filho Nero, primeiro na linha de sucessão, subisse ao trono. O mesmo Nero usaria as amanitas para eliminar o chefe de sua guarda. A mesma mistura teria sido servida a Júlio César, dentro do quadro de conspiração que culminou com a facada de (‘até tu?”) Brutus. Os episódios ilustram a denominação que a espécie mais apreciada desses cogumelos ganhou dos naturalistas – “caesarea”. Mas o caçador de cogumelos moderno não se engana, pois experiências similares ocorreram em praticamente todas as regiões do Hemisfério Norte e legaram às sociedades a sabedoria de como escolhê-los, evitá-los e, melhor, prepará-los.

 

Amigasatake

Interpretação de あみがさたけ. Versão japonesa do cogumelo ‘morille’, também conhecido como ‘henkasatake”.

 

Anzutake.

Denominação que os cogumelos do tipo ‘cèpe’ ou ‘chanterelle’ ganha na cozinha japonesa.

 

Carapuçu

Lentinus velutinus. Variedade de cogumelo comestível, mas pouco explorado, congênere do shitake.

 

Cardoncello

Pleurotus eryngii. Mais prezado dos cogumelos conhecidos como ‘pleurote’. Ganha esse nome por brotar em tufos das bases, raízes expostas e ramos caídos de cardos. No sul da Itália, é celebrado em outubro com a Sagra del Fungo Cardoncello. Nos Estados Unidos, começam a dar suculência a pratos modernos, em que é grelhado como um filé.

 

Cogumelos do tipo cardoncello, também conhecidos como royal trumpet ou eringi: suculência e paladar no prato do A Voce, em Nova York (Foto: Pedro Mello e Souza)

Cèpe

Boletus edulis. Do dialeto gascão ‘cep’, tronco, referência aos pés dos pinheiros dos arredores de Bordeaux, onde este cogumelo de chapéu e pés carnudos é encontrado e também conhecido como ‘gros pied’. No mercado internacional, é mais conhecido como ‘porcini’, denominação italiana para a variedade local da iguaria. Raramente encontrado ao natural, é mais prezado seco, pois concentra o sabor mesmo quando reidratado, quando proporciona molhos, sopas e bases de guisados e risotos de grande valor. Sua ascensão à restauração internacional pode ter sido uma das obras do chef Alcide Bonton, do mítico Café Anglais. Mesmo cultivado e abundante, é uma das espécies silvestres preferidas dos caçadores de trufas e cogumelos, principalmente na França, onde se distinguem variedades como os cèpes de Bordeaux e cèpes d´été.

 

Chanterelle

Cantharellus cibarius. Do grego “kantaros”, copa, recipiente, referência à forma de taça deste cogumelo comestível de chapéu amarelo típico do verão, também conhecido como ‘girolle’. Sua espécie é comum em todos os continentes e foi descrita em 1581 por Lobelius e catalogada em 1601 no Fungorum Historia. É raríssimo encontrá-lo fresco no mercado. O mais comum é comprá-lo seco ou em conserva salgada. No Rio Grande do Sul, as variedades locais são conhecidas como ‘chapéu-de-cobra’.

 

Champignon de Paris

Agaricus bisporus. Denominação internacional deste que é o arquétipo dos cogumelos comestíveis, de chapéu largo, pé robusto e carne macia e suculenta, que se presta ao preparo de sopas e cremes, risotos e omeletes, saladas e pizzas, além de finíssimos refogados para o recheio de pastelarias ou a guarnição de carnes em molho. Hoje, é o cogumelo mais produzido e consumido do mundo, dando conta de mais de 90% de toda a demanda mundial, embora a produção em outros países tenda a diminuir rapidamente esta diferença. Sopas, risotos, omeletes, saladas e finíssimos refogados para o recheio de pastelarias ou a guarnição de carnes estão entre as principais aplicações culinárias.

 

Enokitake

Flammulina velutipes. De えのきたけ, variedade delicada de cogumelo, marcado pela forma de alfinete e a cor branca de seu chapéu pequeno e pelos cabos longos como agulhas. Semelhante ao shimeji, pode ser degustado como entrada, compor molho ou perfumar sopas.

 

Eringi, eryngi

Sinônimo abestalhado do cardoncello, por empréstimo do latim eryngii, do nome científico. É o mais importante cogumelo do gênero Pleurotte e, nos Estados Unidos, vem se consagrando em pratos com a denominação ‘royal trumpet’.

 

Risoto de cogumelos porcini, da Vinheria Percussi (Foto: Tadeu Brunelli)

Girolle.

O mesmo que ‘chanterelle’. A expressão vem do latim gyros, referência à cabeça arredondada desse cogumelo – e de qualquer outro do tipo, convenhamos. Mas guardemos o devido respeito: é palavra que está em circulação antes da descoberta das Américas.

 

Henkasatake.

De 編笠茸. O mesmo que ‘amigasatake’, versão japonesa do cogumelo ‘morille’.

 

Kikurage

Auricularia auricula. Do original きくらげ, japonês para o cogumelo ‘orelha-de-pau’. Tem a consistência agradável, mas sabor quase inexistente. Típico da cozinha asiática, é encontrado seco e aumenta mais de cinco vezes o volume quando ensopado, quando passa a saber o paladar do caldo ou do molho no qual foi refogado ou cozido. É conhecida pelos chineses como ‘mu er’.

 

Nametake

As fontes não se entendem: uns dizem que nametake (なめ茸) é um tipo de cogumelo; outros, que se trata de um sinônimo do nameko (ナメコ). Outros, ainda, que se trata de uma conserva do enokitake ou, totalmente divididos, que afirmam ser um refogado simples desse cogumelo delicadíssimo em saquê e shoyu. Há livros especializados que sequer citam o item, seja como ingrediente ou como fórmula. Receita aqui.

 

Panelinha de cogumelos do Giuseppe Grill, no Leblon (Foto: Pedro Mello e Souza)

Maitake

Grifolia frondosa. De 舞茸, denominação que os japoneses conferem ao cogumelo reconhecido pelo comércio internacional como ‘hen-of-woods’. Tal como os demais cogumelos asiáticos, é largamente usado nas culinárias da China, Coréia e Japão, seja em leves refogados, sopas ou caldos. Hosking prega sua aplicação em omeletes, saladas e na guarnição de arrozes. No Ocidente, onde chegou através da cozinha, vem sendo pesquisado pelas suas propriedades, que previniriam o câncer de fígado.

 

Morille

Morchella edulis, M. deliciosa, M. conica. Do latim mauricula, pequena mourisca, provavelmente pela cor marrom-escura. Cogumelo esponjoso e de cabeça ovalóide, desenhada como uma colmeia. É um dos cogumelos que brotam na primavera, quando pode chegar fresco às cozinhas. Em todos os casos de sua utilização, recomenda-se a fervura para que as toxinas de seu estado natural se dissipem ou se neutralizem.

 

Nameko .

Leitura de ナメコ. Cogumelo japonês de cabeça pequena e alaranjada e de consistência levemente gelatinosa, que cresce em colônias. Disputa com o shiitake a preferência pelo paladar dos japoneses, que o consomem fresco ou em conservas.

 

Porcini

Boletus spp. Ou “fughi porcini”, que significa, literalmente, cogumelo dos porcos. É o mesmo tipo de boleto que os franceses conhecem como ‘cèpe’.

 

Portobello.

Dito ainda ‘crimino’, cogumelo de formato semelhante ao do champignon comum, mas de chapéu avantajado, mais desenvolvido, amadurecido e seco antes de ser colhido, o que o faz rico em sabor e consistência – há quem o compare a uma carne macia, o que permite que seja picado ou fatiado para compor saladas, sopas e até receitas nobres como os ‘stroganovs’.

 

Os raros cogumelos do tipo portobello, em sugestão do Bistrô Charlô.

 

Pleurotte

Pleurottus spp.. Como são conhecidos alguns dos mais saborosos e prezados cogumelos disponíveis no comércio sob as mais diversas denominações, do pleurote ao corne d’abondance, do shiitake ao trompette des morts. Têm a carne tenra e de sabor selvagem intenso, que se revelam em refogados, que valorizarão caças, aves e risotos. Uma das espécies dessa família, o cardoncello, vem sendo usado com a denominação eringi e, nos Estados Unidos, como royal trumpet.

 

Mousseron

Clitopilus prunulus. Espécie de cogumelo de sabor intenso como os ‘cèpes’, que se potencializa com o ingrediente seco. É similar aos ‘moixernons’, que são comuns do outro lado dos Pirineus, nas terras úmidas de Espanha.

 

Senshi

De 占地 . Denominação alternativa do ‘shimeji’.

 

Shimeji

Lyophyllum spp. Leitura de しめじ, variedade de cogumelo japonês que cresce em troncos úmidos de árvores. São pequenos, mas de sabor intenso, principalmente quando refogados ou assados em papel alumínio para o serviço como aperitivo ou acompanhamento.

 

Shitake

Lentinus edodes. Do original 椎茸, um dos mais deliciosos exemplares da família dos cogumelos. Tem um chapéu grande, carnudo e de um sabor denso, mas aveludado, que sabe o aroma dos bosques. Acompanha molhos de caças, compõe sopas e, refogado com shoyu e manteiga, é um aperitivo nobre. Mesmo sendo comum em todo o mundo, especialmente no Hemisfério Norte, caiu na moda com a chegada dos preparados japoneses que vieram ao Ocidente pela onda dos sushis. Na China, a expressão usada para definir o cogumelo, “dong gu” (冬菇) (significa, literalmente, “cogumelo de inverno”).

 

Trompette des morts

Cratellus cornucopioides. Apocalíptica apelação de cogumelos selvagens franceses. É fruto exclusivo do outono e não tem nada de mortal. Pelo contrário. Ao formato de trombeta que lhe dá o nome ‘trompette’ ou ‘trumpet’, some-se o sabor intenso, mas delicado, e até a cor escura, do marron ao negro, que o elevam ao status das mais requintadas iguarias. Também conhecido como “chanterelle noire”.

 

Tintim e a amanita, o cogumelo explosivo de A Estrela Misteriosa (© Moulinsart)

 

 


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Depoimentos

  1. Luiz Edmundo G. Alvarenga disse:

    Caro Pedro,
    as lendas ou mitos são temperos tão necessários quanto os propriamento ditos para realçar ou até resolver outros problemas da gastronomia ou mesmo da vida… O que espantou-me nessa sua brilhante explanação sobre os cogumelos foi o fato do meu desconhecimento , se não pelas variações sobre o cogumento, pelas estórias em torno dele ! Devo fazer um esclarecimento , não justificativa: lá em Minas Gerais, numa fazenda que está , íncolume , só fez crescer , nos últimos 250 anos e na minha família -hoje é uma empresa agrícola-, importa apenas, sal , vinho e uísque ! O necessário para boas refeições são produzidos entre as cercas!
    Pois bem, a recomendação do meu avô (materno) era para que tomassemos cuidado para que os cachorros e cavalos não comesseem “aquilo”, pois era veneno ! Isso nos marcou !
    A primeira vez que fui almoçar na casa de um senhor muito bem posicionado no Distrito Federal, depois Guanabara , quando vim para cá, o Dr. Povina Cavalcanti, pai do Gilberto , meu colega de Faculdade e amigão : o que foi serviço no almoço , pelo modormo? Filet mignon com …cogumelos !!!
    Caro Pedro, foi um momento muito difícil ! Contei para o meu avô(paterno), ex ministro do Supremo , muito amigo do Dr. Sobral Pinto (moravamos todos perto, pois o Cosme Velho e Gal. Clicério eram os melhores endereços da cidade), que riu muito !
    Com essa agradável leitura viajei por lembranças amortecidas e passei a valorizar mais ainda, se é que é possível, tal iguaria!
    Agradecendo muito, parabéns !

    • Pedro Mello e Souza disse:

      Que legal, Luiz, O lado emocional é sempre um ingrediente a mais nesse grande preparado que é a gastronomia.
      Se adicionar mais algum, mando avisar.
      Abração

  2. Gui disse:

    So posso lhe dizer novamente que foi uma leitura maravilhosa; texto absolutamente brilhante.Estou aaprendendo muito com voce. Mas lembro um dia, um comentario de um chef terminando uma apresentação dizendo q todos os os cogumelos são comestiveis, alguns apenas uma vez……