A poesia dos escargots

[21 mar 2012 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

De Monselet a Dumas, a poesia do escargot, uma iguaria “sans vergogne”.

 

“Je t’estime et je t’aime, escargot de Bourgogne,

Pour ta sage lenteur, et ce goût du foyer

Qui te fait transporter ta maison sans ployer,

Vagabond méthodique et cornu sans vergogne”.

 

 

Alameda: escargot à la bourguignonne (Foto: Renato Dabinger Filho)

Do occitano ‘escaragol’, a partir do provençal ‘caragou’. É o elo nada perdido entre o terroir e a alta cozinha hoteleira, são caracóis de terra, nativos ou cultivados das regiões de vinhedos desde os romanos, que, segundo Alexandre Dumas, já os alimentavam com trigo e folhas e mosto de vinho, para torná-los mais digestos.

 

O hábito foi mantido pelos gauleses, que os apreciavam na sobremesa, e se manteve na Borgonha, que gera o maior e mais suculento deles – ou na região de Bordeaux, onde prevalece o ‘petit-gris’, menor, mas de sabor intenso.

 

Mas a criação de caracóis vem de alguns milênios antes e foi, provavelmente, uma da mais antigas atividades do homem. A ‘cargolade’, antigo assado de ‘escargots’ na brasa, que celebra a Páscoa no Languedoc e no Roussillon, é remanescente da liberação do consumo desse tipo de carne durante os jejuns da Quaresma e Pentecostes.

 

Dessa origem humilde, acabou elevado a clássico da gastronomia. E a situações como a que o príncipe Talleyrand-Périgord sugeriu a Anacreon, seu ‘chef’ – o Larousse Gastronomique fala em Carême – que o incluísse no serviço de um jantar em honra ao czar da Rússia, Alexandre I.

 

Mas a mais famosa das receitas, o ‘escargots à la Bourguignonne’, foi o salto definitivo, já que a receita simples do assado delicado na manteiga de salsa e alho, acabou estabelecida pela hotelaria como um paradigma de modos requintados, já que o cerimonial exige intimidade com a pinça que agarra a concha quente firmando-a para que o garfo apropriado colha a carne.

 

O método tem um tanto de elegância e outro de crueldade, já que a falta de talento com esse serviço causa situações devastadoras, pois o molho de um ‘escargot’ voador marca não somente a roupa, mas também o orgulho do conviva desastrado. relegando-o, até o último de seus dias e muitos anos depois a um limbo da sociedade entre a desgraça e o escárnio.

 

Brincadeiras à parte e de volta ao verbete, modas similares à bourguignonne, como a ‘chablisienne’, em que a manteiga ganha uma redução de vinho branco, chalotas e ‘demi-glace’, e a ‘Dijonnaise’, em que a mesma ‘demi-glace’ é substituída por tutano de boi, estão entre as cinco sugestões que Escoffier consagrou em seu “Guide Culinaire”.

 

Mas o mesmo Dumas dos romanos acima lembra como em certas regiões a sofisticação é desnecessária e os ‘escargots’ são simplesmente cozidos na água e sal e degustados com um palito para extraí-lo da casca, guarnecido por um vinho branco delicado. É uma forma de se compartilhar da intimidade da qual gozou o cronista Charles Monselet, que abusou da relação com os versos que abrem este texto.

 

 

 


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