Sempre confio na liberdade criativa da Roberta Sudbrack. É uma experiência que nos permite ver uma espécie de lado B dos produtos brasileiros, com um apuro de preparo de nível A. Mas a cada virada de cardápio, a curiosidade e a expectativa chegam com uma pitada de temor: o de não encontrar dois itens que não só pontuam todos os menus de degustação da casa como estão, também, sob o completo domínio técnico da chef gaúcha: um prato de gema e outro de porco. É esperança lúdica, infantil, proporcionada pela amiga Vanda Klabin.
Veio a gema, untuosa, limpa e quase amanteigada chegou com duas guarnições que costumam ser injustiçadas: o alho-poró, em um ninho de fios crocantes, e a flor de abobrinha, em uma milanesa levíssima.
O porco, não veio. Mas a frustração, também não. Veio, aí sim, uma valiosa e (pra mim) inédita variação sobre o tema, a queixada, uma variedade de porco do mato. Antes um ser selvagem e proibido pela histeria preservacionista, foi encontrada em um produtor específico – não entendi qual, na confusão das loas, das despedidas e dos vinhos (interessantes) que regaram o jantar. A suculência do cozimento lento estava toda lá e o suquinho sugeria um pirão de minuto com a farinha ácida, amarela, quente no sabor, um contraponto.
Mas a brincadeira seriíssima do aproveitamento de itens desprezados, que já valeu a Roberta Sudbrack a assinatura no já clássico caviar vegetal (variações sobre o tema sementes de quiabo), já começara antes, com um consomê de casca de abóbora defumada, que chegou na entrada, em um copinho de barro, em forma de jarrinha. E naquilo que ela batizou como “ostra vegetal”, uma colherada de polpa de tomate (aquele que, para meu estarrecimento, muito chef joga no lixo) condimentada e guarnecida com manjericão.
A dupla tomate e manjericão esteve de volta em um petisco gracioso, uma autêntica caprese tropical: o palmito bebê, em que um broto de pupunha puxava a lista dos produtos brasileiros típicos. Foi o caso do cará, que atuou em dois pratos: como recheio de um ravióli com textura de nuvem e um caldo concentrado de galinha caipira. E em uma trilogia de castanha crua e outro item nosso, o aviú, camarão seco e defumado – e crocante, e salgadinho.
Outro duplo estrelato foi o do piracuí, que é uma palha do pirarucu seco e ralado. Levíssimo, puro sabor, escoltou uma burrata com cobertura de ovas de salmão. E foi o condimento sobre o ravióli de cará. Outro item com a marca do Norte-Nordeste, trazido por Roberta, que chegara de viagem na véspera, era o toque crocante de uma combinação criativa, a da tâmara com chá preto.
O robalo, um peixe injustiçado pela ditadura de salmões, chernes e badejos, chegou com um carimbo de terra brasilis: o jambu, com seu travo quente e entorpecente. O leite frito da sobremesa é um delicado tapa na memória afetiva: quase uma creme brulée frita e regada com um caramelo que me lembrou o melhor da bala toffee.
Enfim, infância pura: na seqüência lúdica, cheguei querendo meus dois presentes. E ainda saí cheio de brindes. Não esqueço, Vandinha!