São quatro as pizzas da minha memória afetiva, as duas primeiras, da infantil: a portuguesa do Pizza Pino, rede de Paris, que vinha com um ovo frito com gema mole no meio; a de presunto do Jangadeiros, hoje extinto, onde eu e meu irmão, em um pós-praia com nosso pais, demos um show de esganação que terminou mal (em grosseria) mas poderia ter acabado ainda pior (óbito); e a do Pizza Palace, onde eu conheci a família Perico. Pensei neles quando fiz esse texto sobre a historinha (ou a lenda, sabe-se lá) da pizza, baseada na pesquisa em autores que se contradizem ou – pior, adotam as anedotas disseminadas pela rede. A quarta, a da Eccelenza, quando ainda era Stravaganze, onde eu fiz uma das minhas primeiras fotos gourmets, há dez anos, essa aí debaixo.
Inspiração grega e etrusca, origem italiana, instituição americana e consagração mundial, a pizza surgiu como um prato de camponeses napolitanos, inicialmente à base de massa coberta com gorduras, anchovas e o que mais houvesse – tomates vieram depois; queijos, muito depois. Foi na área da Campânia e suas cercanias (Calábria, Basilicata, Molise, Sicília, Puglia), mais conhecida como Mezzogiorno, que ocorreu o encontro das colônias dos etruscos vindos do norte com os primeiros assentamentos gregos.
Em comum aos dois povos estava o hábito de comer uma massa de farinha de milhete ou trigo, que aqueciam sobre pedras e tinham a função de um prato comestível. Sobre este prato, que os helênicos conheciam como “plankuntos”, que espalhavam-se ingredientes diversos, de gorduras e azeitonas a anchovas salgadas e figos secos.
Os romanos parecem ter herdado a fórmula, segundo o registro do estadista Catão, no século II a.C., que escreveu sobre discos redondos, de massa cobertos com azeite ervas e mel e assados sobre pedras. A denominação pizza, porém, é um mistério. Alguns acusam a denominação “pita”, que se refere ao pão árabe liso. Outros envolvem o dialeto napolitano “picea”. Também arrolados são os étimos “pincere”, “pingiare”, “pestare” e “pizzicare”, que podem significar de “pincelar” a “lançar”. Este último deu origem ao suspeitíssimo “pissaladière”, uma focaccia coberta com cebolas, e anchovas, criação de provençais e genoveses, vigente até hoje como era na época.
Não se sabe em que momento o queijo passou a integrar as receitas de pizzas. Mas é sabido que os búfalos foram trazidos da Índia no século VII, pelo bom rendimento como animais de tração. Com o leite das búfalas, prepara-se a autêntica mozarela, um dos fundamentos do que se deseja de e uma pizza autêntica. Mais tradicional, porém, era o uso do soro, que sobrava do preparo de outros queijos. O líquido era novamente cozido (ricotto), cobria variedades regionais da especialidade e, até hoje, recheia a chamada “pizza ripiena”, mais conhecida por nós como ‘calzone’.
O ingresso do tomate, então tido como venenoso desde que chegou do Novo Mundo, pelas mãos de Colombo, foi uma contingência das camadas mais pobres. O formato de bagos alarmou a Igreja, que condenou o uso da planta e mistificou seu fruto como física e espiritualmente imoral e, por isso, mortal. O expediente não foi tão forte quanto a necessidade da fome, causada por pragas, guerras e quebras de safras de grãos. E, assim, o tomate passou a integrar a dieta do sul da Itália. E também das pizzas.
A combinação alcançou as ruas com tamanho sucesso que de sabor à lenda de uma suposta visita do rei Umberto I à região da Campanias. Sua jovem e curiosa esposa, rainha Margherita, não se furtou em experimentá-la. E, naquela mesma tarde, encomendou ao único estabelecimento da cidade, uma fornada especial. Honrado pela encomenda, o pobre comerciante, um certo Raffaello Espósito, esmerou-se em criar uma receita especial para a rainha com as cores da bandeira da então nascente Itália: mozzarella para o branco, tomate para o vermelho e manjericão para o verde. Estava criada a pizza margherita. No mesmo momento, instituía-se ainda o primeiro delivery da história – dessa, pelo menos.
A receita simples e rústica, a pizza veio a superar as cercanias de Napoli somente em fins do século 19, com a maciça imigração de napolitanos, calabreses e sicilianos para os Estados Unidos. Padeiros e pequenos comerciantes preparavam a nova iguaria para os vizinhos. Mas foi com o fim da Segunda Guerra Mundial, com o retorno dos soldados americanos da campanha da Itália, que começou a febre da pizza na América. Se o preparo rápido e fácil da pizza é a essência do fast-food, foi sob esse formato que a receita alcançou o mundo e, ironicamente, o norte da Itália, onde a fórmula, muito rústica, ainda não tinha chegado com pedigree suficiente para fazer frente ao repertório de finas massas recheadas, risotos, carnes e frutos-do-mar.
O fenômenos das “fusion cuisines” e das técnicas contemporâneas chegaram às pizzas sob a forma das coberturas mais inesperadas. Excessos, exageros e, principalmente, a distância das fórmulas tradicionais levou um grupo de pizzaiolos napolitanos a se reunir, em 1984, em torno da Associazione Verace Pizza Napoletana, que estabeleceu regras de preparo, rigores de escolha de ingredientes e até técnicas de sova de massas. Através de seu regimento, a associação já completou duas décadas de busca em torno de uma classificação pelas autoridades italianas como D.O.C., hoje desmoralizada e bem distante da almejada Denominação de Origem Protegida (D.O.P.) chancelada pela União Européia.
Em 2004, porém, o ministério italiano publicou uma proposta de reconhecimento oficial como S.T.G. (Specialitá Tradizionale Garantita), como alternativa ao pleito de uma denominação de origem legalmente impossível. O caderno de obrigações gerado pela proposta prevê uma receita e três variações sobre a massa de farinha (W 220-380) regada com azeite extra-virgem e coberta com tomate fresco ou “pomodori pelati”. São elas a “marinara”, com complemento de alho e orégano; “margherita”, com a original ‘mozzarella’ STG ou queijo “fior di latte Appennino meridionale” e manjericão fresco; e ‘margherita extra’, com “mozzarella di bufala campana DOP” e o mesmo manjericão da anterior, mas admitindo somente tomate fresco.
Note-se que, das quatro, apenas duas levam queijo, que, para os puristas, é um acessório desnecessário.
Gostei do seu site, Pedro, cheguei aqui procurando a postagem sobre os chocolates Aquim e achei muito mais do que esperava. Sempre pensei que seria na Itália que comeria as melhores pizzas, mas, talvez por não saber onde encontrá-las, foi em Washington DC, no Lido’s que encontrei a mistura inesquecível de massa e queijo (pois não sou purista e nem imagino pizza sem muzzarela). Por aqui minha favorita continua sendo uma Margherita de massa fina, saída do forno. Parabéns pelo trabalho, um abraço, S.
Obrigado, Stella. Honradíssimo com a sua presença. Já temos atualizações no ar. Opine sempre. Abraço, Pedro