Esse seria um post para uma seção que eu iria inaugurar, mas deixei pra depois. Seria o “Foto roubada do Instagram do Dia”, uma variação do “Imagem do Dia”. Mas aí eu vi o registro do Alexandre Bronzatto, o nosso Bronza, sujeito delicado e picante, complexo e estruturado, crítico imparcial e advogado da boa mesa. Foi uma foto feita alguns segundos diante da imolação que celebrava o seu aniversário. E resolvi evoluir a coisa. Valeu um “Palavra do Dia”.
Tinha comentado com ele que esse prato está no meu top 3 coronariano – o da sensação, não o do colesterol, esse ente lendário. Mas não cheguei a dizer que me deprime ouvir que é uma feijoada francesa. Não é. Um dia, quem sabe, a nossa feijoada, maravilhosa, sim, mas estarrecedora e excessivamente nutritiva, como dizia Cascudo, ainda chegará ao refinamento de um autêntico cassoulet. Só não cabem ao caso patriotadas de terceiro mundo.
É outro feijão – não existe aqui -, outras carnes (carnes e gansos), outras gorduras (carnes e gansos II), a personalidade de outras charcutarias, as doçuras de outros legumes, o travo de outras ervas, a elegância de outros fornos, a profundidade de outras tradições. Em tempos de olimpíadas, vale uma medalha de ouro. Ou, melhor ainda, uma medalha de Bronza.
Isso posto, compartilho aqui os rabiscos e alfarrábios que tenho esboçados para o verbete da enciclopédia:
A expressão cassoulet é uma prosódia do dialeto occitano “caçolo” e “caçolèt”, terrine, a mesma etimologia do espanhol cazuela. Um dos mais tradicionais pratos franceses, “dieu de la cuisine occitane”, segundo Prosper Montagné, transformou-se em campo de batalha pela verdadeira origem do prato e o formato da receita original. A própria palavra é bonificada apenas em 1897 pelos dicionários franceses, contrariando a origem medieval que as lendas nos impõem.
As receitas, que mudam de cidade para cidade, principalmente Toulouse, Carcassonne e Castelnaudary, que reclamam para si a autenticidade da receita, tornaram-se objeto de legislação específica por decreto presidencial dos anos 60 quando, de tão popular, acabou se tornando uma das refeições em conserva mais vendidas da França.
A poesia fica com a seqüência do dito de Montagné, que assume também tons de ranking: “Si le cassoulet est le dieu de la cuisine occitane: Dieu Le Père, qui est le cassoulet de Castelnaudary, Dieu Le Fils, celui de Carcassonne, et Le Saint-Esprit, celui de Toulouse“. Denuncio aqui a parcialidade: Montagné passou a infância em Castelnaudary.
Mas se preparo original não prevê leis, prevê regras rígidas. Um deles é o cozimento longo do feijão branco francês, diferente do nosso, menor, que dá pouco caldo. Os tipos lingot e coco são as mais comuns, mas uma enquete feita pelo jornal Nouvel Observateur, em 2008, trouxe à discussão as variedades tarbais e aquelas plantadas em Pamiers e Cazères, além das ancestrais monjettes.
Outros ingredientes surpreendem os hábitos do gentio de Vera Cruz: o tomate, as batatas e cenouras em discreta brunoise, condimentos como o bouquet garni e, em alguns casos, o cravo e o cominho. A forma de preparo também é diferente, já que o cozimento é feito com caldos de unto e de carnes como a de cordeiro ou de codorna.
A untuosidade final, por exemplo, é obtida com sucessivas gratinadas, regas de caldos e misturas das crostas que se formam, dependendo da versão, com o auxílio da farinha de rosca de pão campagnard. Quantas são? Seis a sete, dizem os compêndios do Segundo Império, mas o bom senso não confirma.
O próprio Anatole France, como lembra André Castelot, em seu monumental L’histoire à table, brincava com o apuro e o tempo de preparo do cassoulet que costumava degustar em Paris. Segundo ele, estaria há duas décadas, na mesma panela, sob o mesmo fogo: “Le cassoulet de Clémence cuit depuis vingt ans, elle ajoute dans le poêlon tantôt de l’ oie, , tantôt du lard, tantôt le saucisson ou des haricots, mais c’ est le même cassoulet”.
O mais clássico e apreciado de todos os cassoulets é o que vem de Castelnaudary, tida também como o berço lendário da receita, em inícios do século 15: longamente sitiados pelos ingleses durante a Guerra dos 100 Anos (na realidade, 116) e já no limite de suas resistências, os habitantes da cidade teriam juntado em suas maiores “cassoules” a derradeira provisão de carnes de porco e aves, salsichas, gorduras, legumes e favas para o preparo de um cozido que restaurasse as forças dos guerreiros para uma decisiva batalha.
O lanchão teria restaurado e multiplicado a força dos franceses, que teriam se lançado de surpresa contra o inimigo, que, em pânico, teria debandado. A lenda é improvável, is ingleses levaram tempo para debandar. E é pouco provável que tivessem favas em estoque – os feijões só chegariam à França 100 anos depois, através dos bascos, chegando à Gascogne e ao Loire (passando por Bordeaux, bien sûr) – e dos catalães, que a integraram no Pays de la Langue d’Oc, aí incluídos o Roussillon e a Provence.
Entre as carnes, outro diferencial e motivo básico do racha entre as cidades. O porco, que estamos acostumados a associar à feijoada, é a base do sal na receita de Castelnaudary, seja na forma de pernil, de barriga e de costelinha, que se juntam a embutidos e ao confit de ganso. Em Carcassonne, pernil de cordeiro e perdizes. E, finalmente, em Toulouse, o mais disseminado, barriga de porco, confit de ganso e o salsichão, orgulho da cidade.
Três receitas, um encanto. E na disputa saudável (gordura de ganso é saudável) entre as cidades, as fileiras cerradas entre os amantes do cassoulet, que – estou com o Bronza – troco por qualquer bolo de aniversário.
Marcel
Rua Consolação 3555
São Paulo
(11) 3064-3089
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É claro que, em vez de André Castelot, li três vezes André Cassoulet!
Melhor que o cassoulet da foto só essa homenagem emocionante, Pedro.
Que presente de aniversário delicioso.
Grazie mille!
Vem logo que a gente resolve isso pessoalmente. Abração!