London Calling

[7 ago 2012 | Pedro Mello e Souza | Um comentário ]

 

London Calling

Mais do que estrelas na mesa, estrelas da mesa

Matéria publicada no Caderno ELA, de O Globo

 

Há mais de meio século, circula uma brincadeira com a qual os próprios ingleses ironizavam a sua cozinha: “Para conseguir três boas refeições por aqui, basta pedir café da manhã também no almoço e no jantar”. É ironia fina, mas hoje datada e incorreta, para não dizer injusta. Mas o paladar, também fino, está bem atual. Prova disso é um roteiro de restaurantes que visitamos pela cidade, alguns deles, considerados como os melhores endereços do momento em todo o mundo.

 

Em um crescendo de qualidade, sugerido e proporcionado pelo guru gastronômico Luiz Carlos Ritter, visitamos estrelas em ascensão, como o The Ledbury ou já estabelecidas como o Hibiscus e o The Square. E novidades aguardadas como o Dinner, de Heston Blumenthal, ou repensadas, como o Petrus, de Gordon Ramsay. E também duas referências monumentais, que mostram porque as novas casas de Londres estão sendo consideradas superiores às suas sedes em Paris: Helène Darroze e Alain Ducasse.

 

Em comum a todos esses nomes, a rota de volta à simplicidade e a confirmação da sentença do crítico do Le Monde, François Simon, ainda no início do ano passado: a gastronomia molecular acabou. O lado mais solene desse funeral está na cozinha do Dinner, novo restaurante de Heston Blumenthal. Com salão e fogões iluminados pelo sol que irradia o verde do Hyde Park. Ali, os pratos são de resgate pra valer, com receitas tiradas de livros do século XVIII. É o caso do admirável mutton broth (caldo de carneiro), da entrada. Reduzido, intenso, levemente adocicado. E guarnecido com um empanado de sweetbreads (as delicadíssimas molejas) e uma gema pochée de ovo caipira (free range), que se estoura entre os cubos de legumes crus.

 

Mutton broth, no Dinner by Heston Blumenthal (FOTO: Pedro Mello e Souza)

 

Outro destaque da entrada, um assado de tutano com escargots, servido em um osso serrado ao seu longo. Nos pratos principais, mais simplicidade, seja no filé de Aberdeen angus com ketchup de cogumelos (original, sem tomate – não esse molho mórbido que as lanchonetes nos impõem) e batatas fritas. Ou seja também no pombo, preparado como convém, quase cru, com molho quente à base de cerveja ale; e no imenso bife de costela de porco Black Foot, o pata negra da ilha. Na guarnição, o molho consistente de caldo de carne e o trigo espelta, hoje salvo da extinção. Na sobremesa, um triplo golpe de sabores e texturas: o sorvete de pudim de pão, o toffee, na sua função de mais fino dos caramelos – e massa de tarte tatin. É a Renascença de Heston.

 

Petrus, de Gordon Ramsey, e a barriga de porco crocante (FOTO: Pedro Mello e Souza)

 

O marketing que o chef Gordon Ramsay vende em seu programa, com tridentes diabólicos e impropérios humilhantes não tem nenhum reflexo no cardápio de seu restaurante. É sutileza, delicadeza, educação, cristandade em sequência, com o canelone de coelho confit com lagostim pochê, o ballotine de foie gras com frango defumado, o salmão de Loch Duart (o melhor do planta, dizem os críticos – e confirma o escriba). Entre os pratos principais, ainda se sentem os contastes da barriga de porco, com a carne entremeando o que resta da gordura, transformado em um crocante que se dissolve na boca, tal como um biscoito de polvilho. Ou a força da galinha d’angola, servida com molho madeira e cogumelos. O preparo é simples. O cuidado com os ingredientes, não. E esfera de chocolate com sorvete de leite com favo de mel; parfait de amêndoas com frangélico; crème brulée de anis estrelado. Tudo isso por 30 libras por pessoa, com direito a pequenos quitutes no café, inclusive uma seleção de chocolates de diferentes origens (Congo, República Dominicana) e concentrações que oscilaram entre 40% e 70% – um orgasmo exigiria um máximo de 20%. Se “Kitchen Nighmares” é o nome do programa do chefe, que o rebatizem para “Sweet dreams are made of this”.

 

Foie gras com banana, de Helène Darroze: melhor do que o de Paris (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

Indo a Mayfair, peça sempre ao motorista de taxi para deixa-lo em Berkeley Square. Dali, vale a curta caminhada a casas como o The Square, o Hibiscus ou, oh, Dear!, o Helène Darroze. Nesse, a decadência de que acusam a matriz de St. Germain já se esvazia com a graça do Carlos Place, com o ambiente do Hotel Connaught, com os quadros de Damien Hirst, com a caminhada digestiva pelos Mt Street Gardens. E pelo cardápio do almoço, famoso, que enche a boca com terrines de foie de pato de Landes (sul de Bordeaux, terra de Helène) com banana. E com a vitela que derrete junto com o recheio da polenta frita, com as favas al dente e o molho de anchovas do Cantábrico. E ainda com a volta da banana do lado do creme de mascarpone com baunilha e granita de lichia.

 

Hibiscus e sua lista de produtos da estação, entre eles os aspargos (FOTO: Pedro Mello e Souza)

 

Na mesma vizinhança, outras duas companhias dignas de Darroze (e também colegas da sua dupla de estrelinhas do Michelin): uma, o Hibiscus, na Maddox Street, com seu menu desafio. Não há carta; somente uma relação de ingredientes de primeira categoria, de grande escolha, em torno dos quais o chef cria pratos como ragu de ervilhas, favas e raviolis, um outro de escargots com cogumelos, um terceiro de aspargos; a vitela escocesa, a pescada da Cornualha, o frango de Goosnargh. A outra, mais adiante, também na Maddox, o The Square, que traz surpresas como a dupla entrada de pato, com galantine e gema do ovo, os lagostins com trufas, o caranguejo de Dorset em parfait e em espuma, o peixe – john dory, o verdadeiro saint-pierre, muito distante, na fisiologia quanto no paladar, desse peixe arenoso, deprimente, com gosto de lodo, do qual o Brasil tanto se orgulha.

 

The Ledbury e as vieiras com carpaccio de couve flor (Foto: Pedro Mello e Souza)

O irmão gêmeo do The Square, na sociedade e nas estrelas, é o The Ledbury, em Notting Hill. Aqui, vale um parêntese: quando é época de um determinado produto, ele está presente, em seu esplendor, em todos os grandes cardápios. Nesse, tivemos o caranguejo de Dorset com parmesão e sorbet de abobrinha; o foie gras, com sua geléia de damasco; as vieiras grelhadas com algas; a cavala em ponto espetacular, tal como a carne de veado. Nem perguntam o ponto desejado: vem como convém, tão magra que guarnecem com tutano.

 

The Square e o lagostins com trufas (FOTO: Pedro Mello e Souza)

 

Por fim, Alain Ducasse foi deixado para o happy end. Todos em tenue de ville, no lobby do Dorchester Hotel, um clássico hoje invadido por gravatas grenás de grifes ucranianas ou de lojas finas do saguão da Emirates. Mas dentro do restaurante, a atmosfera se transfere com naturalidade: todos falam francês e estressam o cenho para traduzir os itens para algum inglês que não descobriu que está na Avenue Montaigne. Na mesa, o básico que se pode esperar de um menu de 25 anos por 55 libras: a sopinha de brócolis com uma unção de raiz forte, a remoulade de aspargos de Luberon, os barbajouans (única especialidade existente em Mônaco), o mil folhas de morelos, a lagosta com massa fresca (crua), o pombo em ponto triunfal, o filé à Rossini e seu foie gras de dois dedos de espessura. Para o serviço da sobremesa clássica de Ducasse, o baba, como nunca se preparou igual, com creme e, para o arrosé, um carrinho com oito tipos de rum. E a fineza dos legumes de porcelana na decoração, a louça de Limoges, o maitre, pupilo de Denis Courtiade, eleito o melhor do mundo não tem nada de posudo. Foi nos buscar na porta do hotel, aos abraços.

 

Alain Ducasse e o filé à Rossini: restorno à simplicidade (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

Não a nós, claro; ao Luiz Carlos. Com a gente, é calling London. Com ele, é London Calling, reação típica de quem sabe que existem diferenças grandes entre know how e savoir faire.

 

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