Uma pitada de antologia na mesa: o velho está sentado, impaciente. Charlie Chaplin, com seu aplomb habitual, examina o ponto do preparado na panela e pede mais dois minutinhos até o ponto ideal. É um sapato – o próprio -, que ele serve na travessa e prepara para trinchar. O cordão, ele separa, levantando com a elegância de uma massa bem preparada.
Como exige a etiqueta, ele extrai as espinhas (os pregos da sola) como em um maitre d’hotel e seu linguado à meunière. E começa a degustar a sola com os dedos, como manda a etiqueta. Ele e o companheiro degustam a sola para a diversão e a aflição de quem assiste a cena de “Corrida do Ouro” (“Gold Rush”), desde que foi lançada, em 1925.
A cena não seria possível sem o ingrediente daquele couro negro mas bem borrachudo. Era puro alcaçuz, expressão que chegou a nós pelos árabes e seu “arq alsws” (عرق السوس) – ou o licorice inglês – do latim “glycyrrhiza”, usada pelos botânicos para denominar a planta de origem da especiaria. Foi uma encomenda feita à empresa American Licorice, de San Francisco, a mesma que viria a lançar os licorice snaps que, hoje, oito décadas depois, integram o cardápio de Harry Potter.
“Droga superior” para os chineses, a cura para a tosse para os egípcios. Pelo menos para Tutankhamon, em cujo túmulo foi encontrado um jarro dessa leguminosa de raiz doce, cuja essência serve hoje à confeitaria como substituto do açúcar. Quanto aos seus benefícios à garganta e à voz, Plínio já fazia suas loas e, hoje, a moderna indústria do fumo faz uso largo de suas propriedades ao misturá-lo ao tabaco.
Na alimentação, sempre foi usado para condimentar doces, balas e refrescos, inclusive os que os soldados franceses tomavam na Primeira Guerra. Em todos esses casos, imprime às receitas um tom pungente e refrescante, semelhante ao do anis, principalmente em pastilhas e em balas elásticas. Uma delas foi moldada como sola de sapato de nossa cena.