Qual o seu carpaccio?

[8 nov 2012 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

Carpaccio preparado em casa, mas com os congelados do Corte d’Oro (FOTO: Pedro Mello e Souza)

1990 Anno Domini. À revelia de nossos sócios na saudosíssima boate Press, eu e Marcelo Maia resolvemos comprar uma máquina profissional de cortar frios para a casa. Motivo: o carpaccio.  Para o público, seria sucesso certo daquela que era uma exclusividade de restaurantes finíssimos – mas não tínhamos, eu ou ele, pensado um minuto sequer nos clientes. Gastamos uma fortuna para nosso próprio deleite, nosso completo gáudio e nossa absoluta indulgência: éramos viciados em carpaccio – e revoltados com os preços que cobravam.

 

No dia da chegada da máquina, cara como um carro, perigosa e reluzente como uma espada de Toledo, ele deve ter traçado uns oito. Eu, uns dezoito, alguns de dois ou três andares. Passei mal, claro. Muito mal: basta multiplicar dezoito pela quantidade de temperos (sálvia), lascas de parmesão, azeite extra virgem e vinagre macerado em morango. Pior era o Bernard de Castejá, aquele grosso, que enrolava todo o prato, lindamente arranjado, em uma garfada só e enfiava a bola inteira na boca. Disgusting…

 

Carpaccio de pato batido e enrolado com queijo: engenharia de Claudio Freitas, no Bazzar (FOTO Pedro Mello e Souza)

Duas décadas depois, episódio Press e seus excessos já no mais imperfeito dos pretéritos, o carpaccio sofreu duas transformações dramáticas no mundo dos negócios: numa, tornou-se commodity no balcão de churrascarias a quilo. Na outra, ganhou valores novos, com a criatividade de chefs que, até hoje, surpreendem com soluções de todos os tipos, com todas as formas de ingredientes. Até, pasmem, com a carne original!

 

Lâminas finíssimas de carne e um leve molho de mostarda. Essa é a versão original do carpaccio, que Giuseppe Cipriani, proprietário do Harry’s Bar, declara ter preparado para uma cliente com problemas digestivos. O batismo do prato estaria no furor causado por uma exposição de um pintor renascentista, Vittorio Carpaccio, famoso pelo uso sem economias dos tons vermelhos em suas obras. Desconfiado que sou desse lendário gastronômico, fui checar. E lá estavam. Vermelhos.

 

Três detalhes da obra do pintor Vittore Carpaccio: os vermelhos da lenda estão todos lá.

Longe de ser uma lenda, a história é confirmada por Arrigo Cipriani, o próprio filho do dono do bar, que Ernest Hemingway tornou famoso pelos acessos de fúria em que redecorava o ambiente a golpes de taco de baseball, após doses exageradas de outras criações da casa, entre elas o famoso coquetel bellini. Não por coincidência, esse drinque também homenageia um pintor, Giuseppe Bellini, conterrâneo e contemporâneo de Carpaccio.

 

A receita foi criada no início dos anos 60, mas chegou ao Rio somente no início dos anos 80, no rastro da renovação da cozinha italiana na cidade. E rapidamente ganhou os cardápios de entradas dos cariocas, primeiro com a sua instigante tonalidade escarlate, depois com suas variações, as do salmão defumado, depois de outros ingredientes em que a leveza é a sua tinta mais forte.

 

Javali com azeite de carvão e molhos de pesto e mostarda, do Bottega del Vino: delicadezas de Nicola Giorgio (FOTO: Pedro Mello e Souza)

A bresaola, dos Alpes da Lombardia, e a carne cruda all’albese são também montados como um painel de carne em lâminas. Ambos podem ter sido a inspiração da apresentação do carpaccio. Na sugestão da bresaola moderna, somente um fio de azeite, simples e bem diferente do que o carioca imortalizou: óleo, limão, alcaparras e o queijo parmesão ralado, que alguns usam sem a devida parcimônia.

 

O lagarto redondo é uma das carnes mais usadas no preparo do carpaccio. Vem da parte posterior da coxa do boi, que, depois de limpa, ganha um formato longo e arredondado. É congelada para que possa ganhar a consistência necessária para o corte delgado no fatiador de frios.

 

Lagostim: sugestão para o carpaccio de Joachim Koerper (Divulgação)

Na faca ou na máquina, outros ingredientes passaram a dar novas cores e novos sabores ao prato: frutos do mar – polvos e vieiras -, aves e carnes secas, legumes, frutas e até queijos e cogumelos. É o caso de dois restaurantes da Rua Barão da Torre: o Satyricon, que tem o carpaccio de polvo entre as suas entradas. E do Bazzar, que tem em seus cardápio, além do formato clássico, as variações com vieiras e pato com queijo. Choraminguei, mas o carpaccio que faziam com vieiras não voltou.

 

Já na bresaola, atração do Margutta desde a sua inaguração, a carne é curada ao vento seco por pelo menos um mês, fazendo com que ganhe um tom mais forte, chegado ao púrpura. O toque brasileiro está no gado usado nos últimos anos, o nosso zebu, por conta do pânico que o “mal da vaca louca” causou no público europeu.

 

Carpaccio vegetal de melancia, do Mugaritz (Reprodução do livro)

Na guarnição, o toque original da rúcula está mantido até hoje na bresaola, que tem suas origens bem mais antigas do que o carpaccio: está citado em livros de inventários de despensas do século XV.

 

Se o corte da carne fina não é exclusividade da família Cipriani, muitos outros têm a sua contribuição para o formato. É o caso dos japoneses, que têm no ussuzukuri uma das suas criações mais refinadas do campo dos peixes crus. Atum, salmão ou robalo, como no caso do Ten Kai, o prato ganha dois contrastes importantes: o molho ponzu, com cítricos como a laranja ou o limão, e a pimenta vermelha, espalhada sobre o prato, que o torna mais caliente, como convém aos cariocas.

 

Piero Cagnin e seu carpaccio de frutas (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

 

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