Fazer essa foto acima me custou três espressos no balcão do primeiro de um rosário de pequenos cafés que pontuam uma das entradas de San Gimignano. Sobrou pra o meu estômago, que pagou o preço da dureza dos comerciantes, que odeiam fotos. Não os condeno. São obrigados a enxotar, a cada dez minutos, grupos inteiros de turistas deseducados que invadem os pequenos estabelecimentos somente para fazer imagens e desaparecer, sem gastar um tostão, saciado como uma nuvem de gafanhotos digitais. No terceiro café, a gentileza aflorou e a foto saiu.
Siena fica a minutos de San Gimignano. Mas o contato mais íntimo que tive com a belíssima cidade medieval, que James Bond destrói parcialmente na primeira cena de Cassino Royale, foi a imagem do ícone maior da sua gastronomia, o panforte. Semanas depois, de volta ao Brasil, eis que o informativo da União Européia me cutuca com o seu tema do dia: o panforte de Siena, que acabara de ter o seu pedido de proteção de marca aceito sob a chancela I.G.P. – seria registrado oficialmente no início de agosto, após dois anos de espera. Para a minha alegria psicótica, onde tem denominação tema fumaça da normativa. E onde há fumaça, há o fogo do caderno de obrigações, que derrete todas as dúvidas culinárias e aquece as dicas históricas do produto.
Aprende-se ali, por exemplo, que a receita do autêntico Panforte (agora, em caixa alta, por respeito) é um inventário rico das colheitas históricas da agricultura daquela gleba da Toscana. São as farinhas dos solos calcáreos, as suas nozes e avelãs de árvores centenárias, seu mel multifloral (millefiori), suas frutas secas na aparência, frescas no paladar. E – não sabia – seus melões. Sim, há duas versões oficiais do Panforte de Siena, uma delas preparada com melões secos do tipo zatta, de casca fina e polpa densa.
Nessa, além da farinha do tipo “0” (zero), das amêndoas descascadas e do mel, um mínimo de 40% (!) de melões e cascas de laranjas cristalizadas. E, na cobertura, que dá a cor nera da denominação, uma pequena unção de noz moscada, canela e até do que o documento descreve como ‘pepe dolce’, o que, no meu entendimento, seria uma versão não picante da páprica.
A versão branca do panforte, a mais conhecida, ganha recheios como os da sidra cristalizada e da amêndoa, ambos obrigatórios, com a avelã e, novamente, o melão, entrando como elementos opcionais, assim como um nada tradicional aroma de baunilha, desde que não seja artificial. Nos dois, casos, são receitas que, mais do que tradicionais, são históricas, e ornavam a parede da Ospedale di Santa Maria della Scala, em 1810, quando o Napoleão, aquele crápula, mandou que a fechassem. No mesmo local, um certo Natale Pepi abriu a primeira empresa para produzir a iguaria, pelas mãos dos panfortaios e a supervisão dos conditoris, os profissionais envolvidos.
O prefixo pan – pão – não se aplica ao Panforte de Siena. É um meio termo entre um bolo de garfo e um doce de mão, de massa rica, que se desmancha na boca, revelando cada um dos ingredientes que compõem a sua tradição. Se for bem feito, o sufixo forte também será apenas uma figura retórica dessa delicadeza, que, aliás, casou muito bem com meu espresso – e me permitiu, de alguma forma, conhecer Siena.
Gostaria de saber se no Brasil vedes-e o panforte. Moro em Goiás.