Quem pensa que vai o restaurante Dinner, em Londres, e espera encontrar as acrobacias moleculares de seu proprietário, Heston Blumenthal, prepare-se para uma boa surpresa: pratos mais do que tradicionais; antigos, substanciosos, alguns medievais, marcam o cardápio da casa. O resgate do chef, eleito uma das vanguardas mundiais da gastronomia, começa com receitas do século 18, uma delas, o velhíssimo caldo de cordeiro (mutton broth) com gemas, que o cardápio registra como sendo de 1730. A gema é enorme e chega no meio do prato fundo com fatias de rabanetes, cubinhos de nabo, salsa e empanados de sweetbreads – o que os franceses consagram como o ris de veau, iscas do que, aqui é servido apenas nos dicionários: timo de vitela. Um ou outro restaurante de parilla vai servir um similar quasse tão divino, mas preparado à grosseira, a molleja.
É uma entrada gloriosa, que ganha o lado lúdico do caldo, que é servido de um bule, pelo garçom, na velocidade adequada para não alterar o conjunto, decorado (e refrescado) por ramos de salsa. O caldo é rico, a gema estoura e, ali, o almoço já estaria ganho. Mas o canto do olho tremeu, forte como quando pensamos que todos notam a sua psicopatia. O motivo: do outro lado da mesa, chegava um roast marrowbone, literalmente, osso de tutano, este de 1720. Chegou aberto ao longo como um bambu, com as partes mimosas quase expostas, não fosse o refogado de escargots (era comida de pobre), anchovas e conserva de legumes em macis, aquela veia da noz moscada.
Nos pratos principais, outro detalhe em que Heston Blumenthal desmente a sua mística: a fartura em um prato só. Foi o que se viu no pombo, assado e servido com redução de cerveja ale, que refogaram corações de alcachofra fresca. É receita bem anterior a 1780, quando foi publicada no clássico The Ladies Assistant and Complete System of Cookery, de uma certa Charlotte Mason. Em outro ponto da mesa, o que seria um manjadíssimo filé de red angus tinha um detalhe: era angus original, escocês, sem cruzamento. Era a receita mais moderna, a caçula daquela tarde, de 1830. E previa cogumelos em ketchup, o original, ainda sem o impensável tomate). Dez anos antes dessa sugestão, surgia a receita da minha costeleta de porco preto, enorme como um ribeye de touro miura. Na guarnição, ensopadinho de trigo espelta e pernil do mesmo porco, em fundo de cidra e mostarda.
Outra receita considerada recente para esse cardápio, que previa um meat fruit dos anos 1200 e um rice & flesh, de fins de anos 1300, era o sorvete de pão preto com toffee amanteigado e xarope do tipo sucre d’orge, com o conjunto servido sobre um licença tão poética quanto anacrônica, a massa podre de tarte tatin. Um completo delírio, da consistência do sorvete – já existia, sim senhor, na Inglaterra dos anos 1830 – ao sablé da massa, ligado pela untuosidade das caldas, que me perseguiram como anjos a tarde inteira. Outra delicadeza veio para a comensal oposta: a quaker pudding (1550), um pudim de pão com peras em seu fermentado (perry) e calda de caramelo marcada no limão.
O preço desses requintes, emoldurados pela vista do Hyde Park, está no cardápio de almoço da casa (muda sempre, vale a pena consultar), que sai por 55 libras por pessoa – mais barato do que um único prato de frutos do mar nos grandes restaurantes brasileiros. Mas dica maior é: NÃO vá à noite. Vá de dia, SEMPRE. E faça valer seus direitos por uma das mesas enfileiradas nos janelões. Se for alguma daquelas que estão no canto esquerdo de quem entra, melhor: pode-se assistir ao movimento da cozinha e das várias labaredas que tomam metade da ala de montagem, como aquelas que saem das ventas dos dragões que os ingleses sempre tentaram domar. Heston Blumenthal é um deles.
Dinner by Heston Blumenthal
Mandarin Hotel
66 Knightsbridge, London, SW1X 7LA
Reservas: +44(0)20 7201 3833
Metrô: Knighstbridge
www.dinnerbyheston.com