São muitos os pratos dedicados a Iemanjá. As referências podem variar conforme a corrente religiosa, a etnia de origem (jejês, nagôs e os paroxítonos iorubas) e, claro, do antropólogo, do pai de santo e até do país em que se estabeleceu – sim, Iemanjá está presente em cultos que vão do Haiti a São Tomé e Príncipe. Minhas referências são poucas, além de Darwin Brandão (A cozinha baiana, 1965), Câmara Cascudo (O dicionário do folclore brasileiro, 1954). Algumas sequer citam Iemanjá, como a compilação de Carlos Chagas Filho (Cozinha do Arco da Velha, 1997) e o ótimo mas resumido Tachos e Panelas (1991), de Claudia Lima. Gourmet que era e sincrético como se dizia, Antonio Houaiss dá algumas pistas valiosas.
Uma coisa é a comida votiva, aquela que é oferecida ao santo e deixada à sua homenagem, ao relento ou ao sabor do mar. Outra é aquele que é servida nas festas, que associam alguns dos ingredientes do orixá. O acarajé não era um deles – tornou-se por conta do dendê e da presença das baianas caracterizadas. O milho é recente, mas lá estará a canjica e o chamado “banho de pipoca”, um ato de purificação que envolve ainda o arroz cru. Longe de ser definitiva ou mesmo precisa, a lista abaixo é uma relação do que consegui apurar, a partir de consultas rápidas e algumas notas que já tinha. Outras virão da pesquisa futura. Ou da contribuição dos devotos.
Abadô
Prato votivo dos candomblés de Rio e Bahia, preparado com milho vermelho torrado e moído. E uma das oferendas a Omulu (Aurélio). E quando cozido e guarnecido com lascas de coco, torna-se uma das versões do ‘axoxô’ ou ‘oxoxô’ e oferecida a Oxossi, Logunedé, Oxum e Oxumaré. Já no abadô de Iemanjá, a oferenda à Rainha do Mar pode ter o milho vermelho substituído por um ‘curau’ ou por arroz branco cozido com azeite-de-dendê. E guarnecido com ‘tainha’ (‘curimã’) frita no mesmo azeite (Lody).
Abativi
Fermentado de mosto de milho (‘awati’, em tupi) cozido e usado em oferendas e celebrações de Iemanjá e Omulu.
Aberém
Bolo de milho ou arroz cozido em folha de bananeira, que se serve como guarnição de carnes ou, já como ingrediente doce, com adição de mel ou açúcar. Segundo a observação de Cascudo, é uma comida votiva de Iemanjá, no culto jejê maranhense, mas há quem o ofereça a outros orixás, como Omulu.
Acarajé
Versão baiana de uma fritura que tem similares ao longo de todo a antiga rota de navegação do açúcar, que envolvia desde as culturas de haitianos, guadalupes e martinicas até o sul dos Estados Unidos, com passagem por Cuba e Trinidad-Tobago. Aqui, uma lenta e paciente massa de feijão-fradinho demolhado e limpo de casca de olho, que é moldado na colher de pau e frio em dendê. Com ou sem os recheios – vatapá, pimentas, camarão seco – o resultado é rico tanto em vitamina A como em tradição de oferendas a Iansã e Iemanjá. O Iphan teve razão em tombar o acarajé: é um patrimônio. E é também um documento histórico, um petisco que os nigerianos já curtiam e nos exportaram com nome e tudo, nos afirma Câmara Cascudo. E quem nos confirma é Dorival Caymmi, na letra da música “Preta do Acarajé”, em que reproduz os antigos pregões do pelourinho com a origem do nome da iguaria: “O acará jé ecó olailai ô”.
Canjica
Também conhecido como curau, é o milho branco inteiro ou ralado e cozido com leite e açúcar, que pode servir como acompanhamento de carnes ou como sobremesas, quando é polvilhado com canela. Quando temperada com azeite de dendê e guarnecida com feijão-fradinho, ganha a denominação ‘ebô’ e passa a integrar o cardápio votivo de Iemanjá, Oxalá e Oxumaré.
Curimã
Como é conhecida certa espécie de tainha comum em todas as águas do mundo – e as brasileiras, desde que os tupis a batizaram “kurema”. Proporciona ensopados e caldeiradas, embora seja mais bem aproveitada na grelha, na brasa ou na frigideira, quando guarnece o abadô de Iemanjá. Entre julho e agosto, muitos se aproveitam das sacas de ovas, de sabor apurado, que podem ser refogadas ou salgadas e prensadas, para dar origem a uma série de iguarias exclusivas no Mediterrâneo. A tainha frita guarnece o ‘abadô’ de Iemanjá, uma das oferendas da Rainha do Mar.
Ebô
Canjica de milho branco que é cozido sem sal e polvilhado de açúcar. Embora Brandão ou Cascudo nada citem a respeito, é indicado por alguns lexicógrafos como prato votivo de Oxalá. Quando regado com azeite de oliveira e mel, regala a Iemanjá, enquanto a adição de coco ralado faz a alegria de Oxumaré.
Ejá
Oferenda à base de peixe, um dos poucos do gênero para quem se supõe ‘rainha-do-mar’.
Manjar branco
Versão brasileira do ‘blanc manger’ em que a massa e o leite de coco, ambos extraídos a mão, substituem a massapão de amêndoas européia. Na guarnição, ameixas secas em calda, dispensada quendo servida, nos terreiros, em homenagens a Iemanjá.