MARAIS PRÊT-À-PORTER
Os restaurantes e bistrôs que valem a ida ao bairro que é luxo só.
“O Marais não existe”, diz o turista empolgado. Tecnicamente, não existe mesmo. A prefeitura não reconhece oficialmente a denominação, que tem fronteiras informais, do Centro Georges Pompidou à Place des Vosges, nas laterais. E das margens do Sena até onde a Rua Beaubourg nos levar. Os próprios parisienses não sabem dizer exatamente onde começa e onde termina a área, mas sabem que aquele antigo domínio dos cavaleiros templários, onde moraram soberanos, é onde convivem, hoje, os fundamentos da cultura da cidade: a arte, o comportamento, a arquitetura e, claro, a gastronomia. Nomes como os de Mickaël Gaigne, de Claude Colliot e até de Alain Ducasse assumem como os grão-mestres dessa nova Ordem do Templo culinário.
E os templos estão nas ruas, começando pela Rue du Temple, estreita, cravejada de galerias, pequenas lojas e muitos açougues, padarias, bistrôs e suas evoluções contemporâneas. Uma delas é de Claude Colliot, localizado em uma das travessas estreitíssimas que, recomenda-se, vale a pena ir a pé: 40, Rue des Blancs Manteaux. No salão, 20 mesas, três garçons. Na cozinha, o chef e três ajudantes. Na aritmética, o resultado dá duas estrelas no Guia Michelin. A prova dos nove (sim, nove pratos) vem no cardápio. As sugestões do dia mostram o passo da evolução do paladar dos franceses: legumes e mais legumes frescos – e quanto mais raros, melhor, como os nabos pretos e os potimarons, uma variedade de abóbora. O primeiro, brilhou com um prato de camarões azuis, crus, consistentes, quase doces. O segundo, em uma sopa com cogumelos girolles e uma presença constante nos cardápios da cidade: a gema de ovo. Em cada prato, um vinho sugerido, sempre com uma opção orgânica, o chamado bio. O bacalhau fresco da Bretanha, o pombo palombe com azeitonas kalamata e o cappuccino de batatas não quebram o vigor para a sobremesa o tout blanc, três brancos: creme de queijo, sorbet de lichia e merengue com água de rosas.
Le Gaigne é um restaurante microscópico, de oito mesas inacessíveis, depois da incensada que ganhou do New York Times. “Venha por sua própria conta e risco”, disse a atendente Aurelie, com aquela fineza castiça do parisiense diante do poder que lhe confere a casa lotada. A insistência valeu e as gentilezas chegaram da cozinha de Mickaël Gaigne, que, com trocadilho, foi um dos pupilos do velho Pierre Gagnaire: uma sopa de celeriac, mais uma raiz recuperada do anonimato e que explica a paixão do francês pela batata-baroa. Caviar e camarões na guarnição. Intenso, dava a impressão de ser o melhor prato daquela noite. Mas veio a roussette, uma espécie de enguia de rio, com potiron (olha ele aí!) – genial. Ali, um detalhe útil para as futuras gerações: o talher de peixe está extinto dos restaurantes modernos de Paris. O cordeiro veio com pastinaca (panais), mais um resgate da arqueologia culinária. O queijo veio na forma de uma nuvem de queijo muenster com cominho e saladinha de dente-de-leão. Inesquecível.
De todos os restaurantes da área do Marais, o mais antigo é o Benoît. Secular, já que completou 100 anos em 2012, já com o brilho que Alain Ducasse trouxe ao velho bistrô, lustrando seus metais da decoração art nouveau, enxugando seu cardápio e enxaguando a sua carta de vinhos, desde que adquiriu a casa, recentemente. Como em todos os casos, a reserva é um bem necessário até pela cerimônia – a pessoa é recebida pelo nome, conduzida à mesa e atendida por uma equipe coreografada e bem penteada. O óbvio do bistrô está todo lá, do patê em croûte e dos escargots, gordos e tão suaves quanto permite uma manteiga de qualidade, com o alho que perfuma mas não marca. E, já estava sentindo falta, o foie gras. Para iniciar, um par de gougères (o verdadeiro pão de queijo) com o rótulo de champanhe que a Lanson produziu para Ducasse. O barbu é um peixe de suavidade extraordinária. Chegou suculento, leve e acompanhado por um gratin de espinafres e cogumelos que já valia a viagem. Para os extravagantes, a dica: a panelinha de ris de veau (equivalente francês das mollejas), quem com foie gras abundante, lagostins e, sim, crista de galo. Foi a minha sobremesa.
Se todo templo que se preze tem uma cúpula – ou “dôme”, em francês -, lá estará o Dôme du Marais, na Rue des Francs Bourgeois, 35. Os detalhes do antigo palácio estão conservados e a pompa muito presente. De dia, o visual da cúpula valoriza mais o pé direito alto do salão e das mesas impecáveis e do jardim de inverno da sala de espera, suntuoso como se Henrique IV ainda passeasse por ali. Mas o passado fica por aí. A entrada é uma truta com creme se amêndoas, que podia ser um pouco menos doce. Nada que a taça de champanhe Dehu – bio, bien sûr – não pudesse compensar. Mais ousadia com o raviole de lagosta com espuma de chocolate e o steak tartare em cubos, com molhos e guarnições tailandesas. Por fim, o peixe, um saint-pierre, o verdadeiro, o untuoso, o firme, o amendoado, que veio com um purê de aipo espetacular e o único sal do prato: os lardons, versão orgânica do bacon. Na saída, mais templo: o restaurante fica na esquina com a Rue Vieille du Temple, mais uma referência aos templários, que ergueram seus muros há 800 anos, naquela área de alagadiços – ou, em francês, marais – onde, mais do que nunca, o templo culinário não para.
Pedro Mello e Souza é editor do blog Talheres, Cheguei!