Dia desses, resolvi desmembrar uma antiga matéria sobre cervejas artesanais em posts isolados. Germanicamente, seguindo minha reinheitsgebot editorial, comecei pela primeira: a abadia, que está logo abaixo. Mas com as mudanças que promovo cada vez que abro essa página, achei mais divertido fazer em grupo – e evoluí-lo, com um pouco do meu lúpulo amargo. Se os verbetes crescerem muito, reedito e transformo em post – e quem vir alguma besteira, pode apontar, que eu apronto. Esse site não tem critério mesmo… se tiver, acuse também, que eu corrijo isso.
O ABC DAS CERVEJAS
Um índice de estilos e sabores das para quem quer degustar a moda do momento: as cervejas artesanais
No filme Perfume de mulher, o feroz Coronel Slade, vivido por Al Pacino, ordena ao garçons do Oak Room, para seu pupilo: “Schlitz! No Schlitz? Blatz! No Blatz? Improvise…”. É uma das senhas para o que, aos poucos, acontece no Estados Unidos: a procura por boas cervejas, longe daquelas que as grandes marcas estabeleceram como padrão para a litragem de churrascos e jogos de futebol, mas sem personalidade exigida pela evolução do paladar no mundo. Por muito tempo, os americanos ainda terão a fama de beber má cerveja.
Imitador contumaz dos vizinhos do norte, os brasileiros também optam pela cerveja baratinha, achando que estão se dando bem. Mas o lento processo de transformação dos americanos é a senha para um significado claro: o paupérrimo trinômio “samba, suor e cerveja” está definitivamente desfeito para o mundo gourmet. Isso, graças à proliferação de rótulos de pequenas cervejarias artesanais, causada pela evolução do paladar da bebida – a cerveja deixou de ser apenas um refresco de granel para ganhar novo status nas mesas.
Lagers e pilsens sempre regeram nossos copos de cerveja e nossas canecas de chope. Mas novas variedades, com cores, corpos, perfumes e sabores bem distintos começaram a surgir e trazer para o Brasil três fenômenos: o da multiplicação dos bares dedicados às cervejas especiais, a chegada das primeiras cartas de cervejas nos restaurantes e – melhor de todas as notícias – a explosão de uma notável rede de cervejas artesanais brasileiras, ditas micro cervejarias.
No exterior, a experiência das cervejas artesanais conta com uma rede mundial de adeptos, que transformaram em febre o gosto diferenciado das cervejas, sejam as tradicionais como as trapistas da Bélgica ou as modernas, como as escocesas BrewDog e a americana Dogfish Head, passando pelos rótulos especiais de época, como as de Natal ou as perfumadas com frutas, chocolates e até ostras ou abóboras. No glossário abaixo está um pouco desse universo, em que brilham marcas brasileiras como a Bamberg, a Wäls, a St. Gallen e outras curiosas, como a Coruja e a Green Cow.
TENTANDO ENTENDER
Abadia
Nos rótulos, abbey ou abdij. Diz-se das cervejas belgas ou, em alguns poucos casos, francesas ou holandesas, produzidas pelos monges, trapistas ou não, no rastro da tradição de antigos alvarás e forais que permitiam que as paróquias tivessem alguma forma de sustento. O resultado está aí, cervejas de alta qualidade, intensas, classudas, algumas orgulhosas de seu milênio de pesquisas em grãos, maltes, águas, fermentos e brassagens (galicismo que só Houaiss aceita), além de algum eventual aditivo como frutas e ervas. A produção limitada envolve a dupla ou tripla fermentação, que garante acentuação de sabor, corpo, nível alcoólico e, muitas vezes cor, que pode tender ao âmbar ou ir ao vermelho ou marrom claro. Mais em
Ale
Fórmula original de produção de cerveja que os ingleses tomaram para si, embora os similares nórdicos “öl”, de pronúncia idêntica, possam ser ainda mais antigos, como sugere o dicionário etimológico de Douglas Harper. Tratam-se, genericamente, de cervejas de fermentação dita “alta”, realizada no alto do tonel e, coincidentemente, liberando temperaturas também altas, em contraste com as lagers, de fermentação baixa. Pela tradição, tendem a ser mais frescas e ligeiramente mais amargas.
Bock
Uma das variedades que as grandes marcas brasileiras usaram para tentar um segmento mais exigente de consumidores, embora jamais chegassem próximo do produto original de Eisenbock, na Alemanha: cervejas escuras, fortes, complexas, maltadas e de boca cheia, quase adocicada.
Bitter
Denominação que os ingleses atribuem a seus ‘ales’ produzidos com forte carga de lúpulo, que confere o sabor excepcionalmente amargo, sugerido pela denominação.
Chope
Palavra de origem alsaciana – schope, em sua forma arcaica -, que corresponde ao copo de porcelana do mesmo nome, com alça e tampa, que, em geral, sustenta meio litro de cerveja ou de vinho. Em países aquém de Tordesilhas, convencionou-se a denominação “chopp”, talvez por influência desastrada do tirolês schoppen, que pode significar tanto a medida alsaciana quanto a garrafa da mesma capacidade – mas, de forma alguma, o método de tiragem do barril, tal como imortalizado nos pântanos além de Finis Tarrae.
Lager
Do germânico lager, lagar, armazém. Tipo de cerveja clara e cristalina, que descansa até ter todos os sedimentos depositados. É o contraponto do estilo “ale”, por ser produzido em fermentação dita baixa, tanto em temperatura quando na parte de baixo do tonel. De origem alemã, contém pouco lúpulo e tornou-se o tipo mais comum que existe em todo o mundo, embora somente algumas delas, fora dos domínios de Brandemburgo, mereçam a marca original em seu rótulo.
Lúpulo
A alma da cerveja, está para a bebida como as castas de uvas estão para o vinho. Mais de 30 variedades diferentes conferem diferentes níveis de amargor ou de perfumes e sabores que vão dos florais aos cítricos. É tido como um elemento de combate às bactérias, o que garante boa duração, tal como explorado no marketing da India Pale Ale.
Malte
Matriz e base das cervejas, equivale à sua musculatura – das mais finas como as ales às mais encorpadas como as imperial stouts. É a semente germinada da cevada, que será torrada e fermentada para a liberação de álcool, açúcar e gás carbônico. Quanto mais torrado esse malte, mais escura é a cerveja.
Pilsen
Variedade relativamente nova de cerveja – “apenas” 150 anos desde que foi produzida pela primeira vez na região de Plsn, na Bohêmia, atual República Tcheca. Inspirou de tal forma a cervejaria alemã que, atualmente, é considerada – e rotulada – como sinônimo de ceveja ‘lager’.
Porter
A denominação “porter” viria do seu público consumidor, na Inglaterra Medieval: carregadores de diligências e estivadores dos portos. Uma das cervejas da moda, é reconhecida mais pelos aromas de caramelos ou chocolates do que pela cor, que pode variar do dourado ao escuro.
Rauchbier
No nariz, lembram um prato de carnes amorcilhadas, o que faz dessa cerveja alemã, preparadas com malte de cevada defumada – a palavra rauch significa fumaça. Recomenda-se o consumo com salsichinhas e carninhas, embora seu espetáculo se dê não com um kassler fino, mas com uma feijoada robusta.
Stout
Palavra que, desde o século 13, vende dois conceitos bem presentes e um dos estilos de cerveja preferidos dos ingleses: força e orgulho. Tendem à cor escura do malte torrado e corpos que variam conforme região, estilo e até marca. Dezenas de tipos se multiplicam, inclusive uma suspeita “oyster stout”, que, sim, já foi preparado com ingredientes como as ostras e, hoje, guarda um leve sal, próprio para se degustar com o crustácdeo. Seu principal sinônimo é irlandês, a Guinness, a mítica cerveja preta irlandesa, de sabor forte como o de um café e corpo médio, excelente para acompanhar carnes.
Weissbier
Ou, simplesmente, trigo. Em alemão, que manda nas originais, significa, literalmente, “cerveja branca”. No resto do mundo, é a cerveja da moda. De branca, tem pouco. De moda, muito. A cor é referência à matriz do malte dessa cerveja clara e refrescante, a mais indicada para ser degustada em copos longos e finos, do tipo tulipa. Tende ao paladar ligeiramente voltado à canela, mas, gastronomias à parte, tem uma única função: limpar a boca. Tende a ser leve, mas, fica o aviso, não é uma cerveja para fracos. Ou fracas.